A Dinastia Do Sol - Continuação
3 participantes
Fanfics :: Categorias :: Outros :: Paradas
Página 1 de 1
A Dinastia Do Sol - Continuação
Dois
A Taverna era um lugar agitado. Naquela noite, havia garotas esbeltas exibindo suas belas pernas no palco, acompanhando a musica agitada da banda que tocava ao fundo. Homens embebedavam-se e riam monstruosamente, alguns jogavam e apostavam, e quase sempre, nessa roda de jogos, alguns saiam lutando até ambos caírem bêbados no chão. Nick aplaudia ao ritmo da musica, admirando de perto as dançarinas no palco e Kyshme conversava com antigos amigos, próximo ao bar. Selenium estava sentado, com a cadeira equilibrada em dois pés e por sua vez, apoiou os seus sobre a mesa de mogno, onde estava um corno de cerveja vazio. Naquele canto isolado da taverna, a sombra cobria metade dessa mesinha e também, todo o rapaz, deixando a vista da luz apenas suas botas negras e sujas.
Esse homem era de longe, o que mais chamava atenção. Sua aparência física era considerada por muitos, sobre-humana. Olhos dourados e cabelos leve e naturalmente azulados não são comumente vistos por ai. Seus lábios têm um tom entre azul e lilás. E os mitos sobre esse cavalheiro da Dinastia do Sol são incontáveis. Era freqüente esse tipo de conversa em tavernas. Em geral, ouvia-se sobre um suposto pacto com demônios, ou de sua origem divina. Contudo, esse aspecto físico é típico dos nascidos na mítica Terra Das Ilusões. Na época dos seis anciões, esse era um lugar próspero e desenvolvido, mas com a chegada dos monstros e demônios, e com eles a guerra que originou Dong Xuen e as seis academias, o lugar se transformou em ruínas e desertos que abrigam antigos demônios. Por isso era difícil conhecer algum descendente direto de antigos habitantes dessa cidade arrasada. Eles chamavam esse povo de Lazuli.
Selenium encarava uma moça, bem acompanhada de alguns rapazes e lindas amigas. O cavalheiro sabia ler a alma dos homens. Apenas um cruzar de olhares bastava para que identificasse seu caráter, seu passado e ainda, suas intenções. Mas a forma como encarava a garota era diferente. Já havia descoberto que ela não estava ali para dançar, jogar ou beber. Mas seus cabelos negros e ondulados chamavam tanta atenção... Seus olhos escuros como a noite pouco antes da alvorada, olhos meigos... Isso o incomodou. Tratou de desviar o olhar para as dançarinas.
A guarda imperial vive enviando pequenas patrulhas periodicamente na taverna. Nunca acontecia algo demais, apenas alguns beberrões advertidos aqui e ali.
Na mesa de jogos, alguém estava se dando bem. Olhares desconfiados começaram a ser avistados e gritos de comemoração mais intensos. Era um pequenino bem vestido. Devia ser algum aluno ou coisa do tipo. A Antiga Taverna não é lugar para pequenos. O garoto metia-se entre inúmeros brutamontes e os desafiava no tal jogo.
Foi um susto geral quando a guarda imperial rompeu arrombando a porta da taverna com espadas em punho. Um homem que se diferenciava dos outros através do uniforme olhou de soslaio para a mesa de jogos. Devia ser algum comandante.
- peguem-no – gritou apontando para o garoto das apostas. Selenium não se mostrou surpreso. Levantou o dedo chamando uma serviçal, que lhe deu mais um copo cheio.
Três guardas avançaram lentamente na direção do pequeno. Este pegou seu dinheiro e tentou correr para os fundos. Mas outro guarda já havia se interposto na porta. Então o rapaz deu meia volta exibindo hábeis movimentos, e catou uma cadeira do chão, arremessando-a contra a vidraça e saindo pela janela. Os outros, pouco fizeram alem de observar, e alguns caiam em gargalhadas. A cadeira de Selenium agora estava vazia, mergulhada nas sombras da taverna.
Os guardas montaram e armaram suas bestas. Naquela rua, o jovem escalou um casebre ali perto, e já no teto, escalou ainda mais uma casa ao lado. Acompanhando o garoto correndo no topo das casas geminadas, um dos guardas preparou sua besta e a apontou para o rapaz. Fez o disparo e acertou seu pé, fazendo-o tropeçar e cair, rolando até a borda daquele telhado. Antes da queda, que lhe custaria muitos ossos e com certeza as duas pernas, agarrou-se na laje. Outro guarda mirou sua besta. Talvez fosse apenas derrubá-lo, talvez tornasse o tiro letal. Mas nada aconteceu quando disparou. A flecha que ia cortando o vento na direção do pequeno simplesmente sumiu.
- algum problema, senhor? – disse Selenium, saindo das sombras de uma viela.
O homem viu a insígnia da dinastia do sol no sobretudo do Cavalheiro.
- este jovem está sendo procurado pela guarda imperial por vandalismo, devemos prendê-lo na casa de sombras, como nos foi ordenado.
A temível casa de sombras, pensou. Era, realmente, um lugar horrendo. Uma espécie de solitária, mas coletiva. Lá era onde colocavam os mais insanos e doentios bandidos, ladrões e estupradores, condenados a ficar confinados por anos à deriva das sombras. A loucura tomava conta desses condenados, e os relatos do que acontece naquela casa são facilmente achados em histórias de terror que se contam ao redor de fogueiras, ou em antigos livros confiscados pela guarda imperial.
Então o outro cavalo, que havia sido deixado para trás, alcançou o restante do grupo. O garoto acabou caindo, mas Selenium o segurou e o manteve em pé, imobilizando-o com a mão em seu ombro. Seu pé estava vazando sangue e a flecha ainda estava lá. Sua bota ficou quase por completa vermelha. A dor devia ser infernal.
- diga-me senhor comandante, o que leva um jovem de não mais de dezesseis anos a ser condenado à casa de sombras? – disse o Cavalheiro. O garoto estava ficando inquieto, intimado pelas bestas apontadas para o seu rosto.
- este pirralho destruiu nosso bar. Foi o único que estava presente na hora, só pode ter sido ele.
- bar Ou Yang você diz? Destruído?
Ainda não eram motivos para uma pena tão grave.
- e alguém morreu ou ficou ferido? – disse calma e friamente. Selenium não era do tipo que exibia expressões ou sentimentos tão facilmente.
O Senhor Comandante olhou para o garoto.
- este verme matou dois de nossos superiores que almoçavam lá. E ainda encontramos incontáveis corpos carbonizados! Jovens alunos, garotos inocentes! Esse pequeno é um monstro, merece ser punido! – rosnou, perdendo a paciência.
- por que eu faria algo assim? – intrometeu-se Uchiha. – eu só estava almoçando, não fiz nada, absolutamente nada. Meu único erro foi ter rejeitado a comida da minha cantina.
Selenium sabia que o pequeno era inocente. Sua alma era pura.
- você foi visto por vários matando inocentes. Todas nossas testemunhas dizem o mesmo. – prosseguiu o Senhor Comandante Mota.
Selenium olhou para o garoto, que por sua vez, olhou de volta para o Cavalheiro.
- diga para eles senhor, diga que não dão armas com gume para alunos – disse desesperado.
- não posso. – respondeu Selenium – levem-no.
O garoto começou a gritar e a chutar, seu pé jorrava sangue da flecha atravessada, mas o desespero o fez ignorar a dor. Gritava que era inocente, alegava, mas os violentos guardas o silenciaram com uma bofetada na cara, usando o pomo da espada. Desmaiado e babando sangue, amarraram o jovem no cavalo e foram embora para o centro da cidade. Selenium assistiu aquilo tudo calado.
Mais ou menos uma hora depois do pequeno vândalo fugir alucinadamente, Kyshme e Nick decidiram que já era hora de deixar a taverna. Faltavam três horas para a alvorada e precisavam descansar. Procuraram por Selenium em todos os cantos, mas só quando saíram que esbarraram com ele naquela rua. Montaram seus cavalos, que foram dados sob as ordens de Martini, Senhor Intendente da Dinastia do Sol. Pouco conversaram sobre o que tinham visto. Não era grande coisa, afinal, nunca houve uma noite pacata naquela taverna. O sobretudo de Selenium estava manchado de sangue, mas mesmo na escuridão da rua deserta, Kyshme notou isso. Não ousou perguntar. Estavam passando no Palácio Imperial quando Nick parou para ajeitar as rédeas. Aquela praça era bem iluminada assim como todo o palácio. Naquela mesma hora, uma carroça negra e comprida, puxada por seis alazões também negros parou em frente à grande porta da magnífica sede do império. Kyshme e Selenium pararam para admirar, montados, enquanto Nick pouco se importava. As rédeas eram sua preferência. As quatro portas da carroça, com detalhes dourados, se abriram, e de lá saíram figuras um tanto interessantes. Todos se pareciam com Guardas Imperiais, exceto um. Este se vestia todo de negro e nas costas carregava uma manta comprida e bem trabalhada, com a insígnia de Dong Xuen. Estava muito bem vestido, e alem da espada embainhada, escondida entre as vestes e a manta, carregava uma magnífica Montante – uma espada de duas mãos – feita de aço Noraniano, o mais nobre dos aços, feito na Cidade Da Saudade. Caminhou com ar superior por entre os degraus do palácio até ser recebido na porta por Puma e Feng.
- deve ser o novo capitão da guarda. – disse Kyshme. – e veio bem preparado. Pelo visto, já deve estar ciente do que o aguarda nesse cargo.
Selenium riu suavemente.
- esses demônios... Adoram homens com manta. Esse aí não durará muito.
- precisa de ajuda Nick? – Kyshme estava ficando impaciente.
- não, estou perfeitamente dando conta dessa maldita rédea.
Pouco depois, saíram dali e foram para o pequeno castelo da Dinastia do Sol, próximo a muralha da cidade.
O homem de preto entrou no palácio, reverenciado por Puma e por Feng. Os outros quatro homens foram levados para o quartel atrás do Palácio. Guiaram o cavalheiro pelo corredor, até o Salão principal. Puma abriu a porta da direita e Feng da esquerda e se posicionaram ali perto.
Havia um homem ensangüentado, acorrentado, seminu e de joelhos. Na mesma sala estavam os mais importantes ministros e conselheiros, entre eles Bushido, mestre das armas e Lucário, mestre da moeda. Feng andou vagarosamente para perto do homem ajoelhado.
- este homem é um desertor. Ele foi capitão da Guarda Imperial e você o substituirá. Agora cabe a você julgá-lo, para provar que tem potencial. – disse Feng para o homem de preto.
- você sabe a pena dos desertores, senhor? – disse Puma, desafiadoramente.
É claro que o homem sabia. Todos sabiam. Desembainhou a Montante e a segurou com apenas uma mão. O metal de quase três quilos tiniu no chão. A Lendária Espada Pesada, invejou Puma. Avançou contra o homem ajoelhado e ergueu a espada sobre sua cabeça. E agora ia desferir o golpe fatal. Quando desceu a arma até o frio da morte eriçar os pelos da nuca do homem ajoelhado, o golpe foi interrompido.
- espere! – gritou Puma. – não vai permitir que diga suas ultimas palavras?
O homem de preto encarou-o.
- prossiga – disse para o condenado.
A princípio pensaram que ele não falaria nada, mas logo começou a gaguejar e murmurar palavras.
- todos... Todos nessa sala...
Alguns ali começaram a trocar olhares, e o pobre condenado continuou.
- todos... – riu – estão mortos.
Em seguida, o aço verde azulado da Espada Lendária cruzou seu pescoço e sua cabeça caiu e rolou no chão. O corpo esticou-se no carpete vermelho e o sangue jorrou nas botas negras do homem sinistro.
- como o chamam na Terra Da Luz perdida? – perguntou Feng.
Embainhou a espada melada de sangue nas costas e ergueu a cabeça encarando o Capitão de Proteção.
- Sargento Zero.
Feng fez uma breve pausa e então prosseguiu:
- Sargento Zero, eu o nomeio Capitão da Guarda Imperial. Deverá fazer o juramento diante de seu exercito e de sua patrulha, deverá vestir o manto Imperial. Seu dever será sua prioridade e sempre me obedecerá.
- sim, senhor Capitão. – respondeu obediente.
Quando foram dispensados, os ministros e conselheiros voltaram a seus afazeres. Lucário foi apressadamente ao banheiro. Apoiou-se na pia e vomitou. Quando recuperou as forças, lavou o rosto e se olhou no espelho. Pouco tempo. Já devem estar chegando. Estão atrasados. Estão atrasados, isso. Eles vêm, eu sei que vêm, só estão atrasados. Secou o rosto na veste azula – negra. Voltou para seus aposentos e desesperadamente pegou numa pena e começou a escrever uma carta. Recolheu seu corvo da gaiola e amarrou a carta nele.
Na manhã seguinte, Kyshme acordou com fortes batinas na porta do quarto. Levantou e se vestiu para atender a porta.
- Feng, eu não o esperava.
- claro que não – estava sozinho. O Senhor Capitão de Proteção nunca anda completamente sozinho. Em geral, está cavalgando com seus guardas de manto azula-negro. – posso entrar?
- você já está aqui. – Kyshme respondeu em tom sério. – diga, meu amigo, o motivo dessa... Inesperada visita.
- ontem de noite nomeei o novo Capitão da Guarda Imperial.
- já estava na hora. Os vândalos tomam conta da cidade hoje em dia. E o que fizeram com o antigo Capitão?
- o desertor? – perguntou com desprezo – ele teve o julgamento de um desertor e a punição de um desertor.
A morte, murmurou Kyshme.
- estou indo para o Bar Ou Yang. Ou o que restou dele. Quero entender o que aconteceu lá. Você vem?
Kyshme hesitou em responder, mas acabou indo também.
Selenium cheirou o pequeno pedaço de concreto carbonizado.
- fogo azul – disse largando o objeto.
- como é? – perguntou Nick, pouco preocupado.
- fogo azul. Apenas demônios produzem fogo azul. Esse lugar foi destruído por demônios e sobrou pro pobre garoto.
- não acha que se demônios tivessem passado por aqui matando todos, não iriam notar?
- não esse tipo de demônio, Nick. Raposas Malignas entram no corpo dos homens e os levam a fazer coisas horríveis. Isso explicaria muita coisa.
Feng aplaudiu ao fundo, de cima de seu cavalo.
- vejam só nosso Demonólogo. E então senhor imortal, encontrou algo útil?
Kyshme olhou de soslaio para o Capitão. Era um dos poucos que sabiam a verdade sobre Selenium, e Feng abusava disso. E chamá-lo de Senhor Imortal o irritava profundamente.
- eu soltaria o garoto no seu lugar, Senhor Capitão – respondeu o Lazuli. – prender um menor de idade numa casa de sombras pode custar seu cargo.
Feng riu daquilo.
- o garoto fez uma chacina por aqui, ainda existem restos carbonizados por todos os cantos. E esse cheiro de morte que me enjoa. Esse pequeno vai apodrecer nas sombras, guarde minhas palavras.
Os lábios azuis de Selenium se mexeram desconfortavelmente. O rapaz estava irritado. Odiava Feng. Permaneceu calado e se retirou, sem virar para trás enquanto o Senhor Capitão se desculpava sarcasticamente.
Kyshme ficou calado. Feng era um sujeito fácil de irritar, e contrariá-lo era uma estupidez.
- demônios – o Capitão cuspiu no chão – como eu odeio demônios.
Kyshme, Nick e Feng ficaram duas, talvez três horas a fio nas ruínas do bar.
- pobre Ou Yang. Nunca encontraremos um mestre cozinheiro tão talentoso. – disse Nick, em tom seco e triste.
Kyshme ignorou o comentário.
- vou voltar para os palacetes. Arrumarei nossas coisas.
- pretendem partir?
- a formatura é em duas semanas, Feng. Precisamos tomar rumo a Estrela de Fogo o quanto antes possível.
- formatura.. Tinha me esquecido completamente. Fico surpreso que vocês foram convidados. Mas não posso deixar que partam.
Kyshme se surpreendeu com o que ouviu.
- O QUE? COMO ASSIM?
- abaixe o tom de voz rapaz. Não posso deixar que partam. Os ataques de Demônios têm sido cada vez mais freqüentes. Estamos planejando uma investida contra as Terras Prósperas. Queremos acabar com essa ameaça de uma vez por todas.
Agora era a vez de Kyshme rir.
- quer colocar homens nas Terras Prósperas? Faça-me rir, senhor Capitão. – virou as costas – vamos Nick, o tempo está fechando.
- NÃO VIRE AS COSTAS PARA MIM – gritou Feng desembainhando bruscamente a espada e apontando-a para Kyshme, que se virou sem dar importância para o metal precioso quase roçando seu rosto.
- ou o que? – desafiou – vai mesmo ferir um cavalheiro da Dinastia do Sol? Escute, senhor Capitão de Proteção, minha dinastia está muito acima desse império. Enquanto você não carregar a insígnia Solar no peitoral da sua armadura, não será você que me dirá o que fazer.
Feng abaixou os ombros e embainhou lentamente a espada. Kyshme virou-se novamente e já estava se preparando para montar.
- Kysh.. Eu peço... Por favor... Sua dinastia está ocupada com as próprias guerras, vocês são os últimos com quem podemos contar. Por favor, Kysh...
Ele está com medo, pensou encarando a expressão no rosto do Capitão Feng.
- descarte qualquer plano que você tiver. Levar homens para as Terras Prósperas é suicídio. –disse, por fim, o Cavalheiro.
- quero você no meu conselho Kyshme.
Isso irritou Kyshme profundamente.
- não sou eu quem você deve chamar. Nós dois sabemos muito bem quem seria melhor para combater demônios.
- ele não pode ser do conselho imperial. Ele é um Lazuli.
Agora o cavalheiro encarou o Capitão de Proteção.
- você me dá nojo, Feng.
Montou no cavalo.
- vai nos ajudar? Vai ajudar seu reino?
Nick riu de leve, montado no cavalo ao lado.
- vamos nos reunir no Palácio do Senhor Bei Si. Selenium estará lá. – disse Kyshme.
- pretende por o Lazuli na presença do vosso Diretor?
- este não é meu reino, senhor. É do vosso Diretor. Se quer mesmo salva-lo, dará ouvidos a um Lazuli.
Nick e Kyshme partiram ao trote dos cavalos.
Observava o Sol se escondendo no lago gigante ao fundo, muito atrás da muralha. Seus olhos dourados podiam observar-lo pelo tempo que fosse, sem que se incomodassem com o excesso de luz. Mas agora, o gigante símbolo da mais poderosa Dinastia dos cinco impérios estava num tom alaranjado e já não incomodava mais a vista de homens normais. Olhou um corvo preto que pairou em frente à torre e depois pousou na borda da cobertura, perto de onde Selenium estava sentado. Um comportamento estranho, já que corvos não gostam de homens e a presença de um Lazuli desconforta qualquer animal.
- olá, Altharie. – disse ao corvo preto.
Sombras negras circularam o corvo e logo, a ave criou pernas e braços, e por entre a roda de sombras já se via um rosto humano.
- faz muito tempo... – disse o corvo humano. Agora estava quase um humano, se não fosse o gigante par de asas negras em suas costas nuas.
Selenium deixou que terminasse a frase.
- que não vejo o Sol. – completou o demônio.
- está o vendo agora.
- não esse sol, meu caro Lazuli. Estou falando da Dinastia. A muito tempo não sinto o gosto de sangue dos guardiões sagrados.
- a Dinastia do Sol está em guerra com a Dinastia do Lenço Preto. Não vai vê-los tão cedo no Norte.
Altharie suspirou.
- essas coisas não nos contam.
- vocês andam por esses lugares todas as noites, visitam bordeis e tavernas como se fossem homens, e ainda vejo muitos encantando mulheres humanas. Com essa convivência, acho difícil esperar que estejam por fora das coisas... Agora, conte-me, velho amigo, quem é a moça dos cabelos negros e ondulados?
O demônio alado pareceu surpreso.
- do que estás falando?
- na madrugada de hoje, na Antiga Taverna, eu vi uma garota um tanto interessante. Linda, por sinal, mas não era humana. Sua alma era negra.
- Sese... Não sabe que é feio espiar na alma dos outros?
Selenium deu um risinho e continuou:
- primeiro uma Enviada aparece na Antiga Taverna, e depois ficamos sabendo que o bar Ou Yang pegou fogo. Diga-me, a garota tem algo a ver com isso?
Altharie não respondeu. O Lazuli prosseguiu:
- quando entrei pra dinastia do sol, fiz meu juramento, e você sabe disso. Sabe que preciso matar todos os demônios que surgem nas cidades da Dinastia. Enviou uma garota porque acha que não posso matá-la. Muito esperto.
O corvo riu.
- lembro da época em que eu tinha que explicar as coisas pra você... Agora vejo que os papeis se inverteram...
- se essa garota não sumir até amanhã, juro que vou matá-la. Nosso Capitão de Proteção me odeia por puro preconceito.
- esses humanos... – interrompeu Altharie, mas logo Selenium tratou de continuar.
- queimar bares e tavernas só piora minha situação.
- terminou? – disse Altharie, em tom brincalhão. – ótimo. Agora me escute. Viktor está irritado. Não são nossos demônios que estão atacando vocês. Seus homens não podem ir as Terras Prósperas. Somos inocentes.
Altharie é um poderoso demônio caçador. Ele é um cachorro louco, mas domesticado. Se o dono decide libertá-lo da coleira, então os humanos terão um grande problema. Demônios são falsos e mentirosos, e o fato de não possuírem alma deixa Selenium ainda mais desconfiado. Tudo é mais fácil quando se pode ler a alma do individuo. Mas Selenium sabia que não estava mentindo. Conhecia Altharie de longa data.
Agora o Sol se pôs por completo e a escuridão estava tomando conta do Norte.
- não mate a garota, Selenium. Ela está aqui por outros motivos.
- posso pelo menos saber o nome dela?
Altharie se levantou. A vista do topo daquela torre, onde estavam, era magnífica. Sombras rodearam o corpo e as asas do demônio e ele foi se desfazendo, e penas negras foram sendo levadas pelo vento. E ouviu um sussurro:
- Andreza.
Três
A luz do archote tremeluzia solitária quase engolida pelo breu que tomava o interior da biblioteca. Douglas era o único sinal de vida dentro da imensidão fria daquele enorme acervo de livros e manuscritos. A biblioteca permanecia na escuridão para conservar melhor os livros e as antigas relíquias que nela são guardadas. Na mesa redonda, onde o garoto se aprofundava nos conhecimentos místicos, havia uma pilha de grossos livros, provavelmente já lidos, e outra pilha, também de livros, provavelmente por ler. Entre essas duas pilhas, Douglas apoiava os braços num manuscrito aberto já na metade. Estava viajando por entre o passado e os tempos de glória da antiga guarda de Bei Si, os nove lendários guerreiros da antiga dinastia, e ainda mais no passado, na época do guardião Bess e seus seis guardiões sagrados, que fundaram as seis academias. Sim, foi um passado glorioso, mas sombrio. Quando os primeiros demônios invadiram os cinco impérios e as sombras rodeavam os homens.
O manuscrito contava muitas dessas histórias, quase todas reais, embora muitas exageradas. Era difícil dizer se o livro era um romance escrito por autores inspirados ao longo dos séculos, ou se era um documento que guardava a história das antigas dinastias e clãs.
No fundo do grande salão de livros, uma porta se abriu, e com ela, um feixe de luz rompeu até alcançar os olhos de Douglas. A forte luz do sol fez a vista do garoto doer, mas logo se adaptou à claridade. Ainda não dava para distinguir as entidades que adentravam a biblioteca, pois estavam contra a luz. Um deles carregava um archote aceso e se aproximou do pequeno leitor.
- mestre Jya está solicitando a presença de todos os alunos – disse uma voz grossa e gravemente séria.
- monitor Lu – disse Douglas enquanto se levantava atrapalhadamente da mesa. Fez uma reverencia e logo se rendeu à curiosidade. – o que está acontecendo? Tropas de lenço preto outra vez?
O homem não respondeu e o garoto o seguiu até a saída. Perto da porta, voltou correndo até o livro e marcou a pagina onde havia parado.
Andaram até o pátio, onde vários alunos estavam em uma formação tradicional, com dez fileiras de vinte. O pátio era uma área enorme, com algumas distrações para os alunos de folga. Era cercado pela enorme Casa Rosa, onde moravam os mestres e monitores da Academia Estrela de Fogo, e seu ancião, Mestre Wu. A casa erguia-se em três andares, com quase cem metros de altura e duzentos metros de comprimento. Realmente, uma magnífica estrutura, modelada a mercê da cultura nortenha das Colinas Vermelhas.
Ao leste, o pátio terminava na varanda do Palácio de Soray, construído há trezentos anos por ordem de Soray, o aprendiz de Wu. Nesse prédio, cuja grandeza pouco se compara a Casa Rosa, moram os professores, os guardas e os soldados. Dentro do pátio, mais ao fundo, havia a cantina. Um restaurante considerável, onde se treinavam quase todos os grandes mestres cucas dos cinco impérios. A maioria ia para Dong Xuen ao terminar o curso de cinco anos. Ao oeste, o pátio dava na biblioteca, o segundo maior complexo de livros de todas as academias, perdendo apenas para a colossal biblioteca de Dong Xuen e a de Liao Yun.
Na extensa varanda do segundo andar da Casa Rosa, estava o mestre Jya e seus dez conselheiros, cinco de cada lado, vestidos de vermelho alaranjado e dourado, uniforme tradicional do Conselho da Estrela de Fogo. Abaixo, no nível do pátio, os vinte monitores enfileiravam-se de acordo com as fileiras dos alunos. Douglas estava surpreso. Toda aquela movimentação no pátio e ele não estava sabendo de nada. Devia ter passado muitas horas afundado nos livros. Não via Uchiha entre os alunos.
Aquele miserável deve estar matando aula, como sempre.
O garoto se posicionou numa das fileiras.
- meus alunos, exímios e pródigos, eu vos reúno para uma triste noticia. – soou a voz rouca de Jya. – um dos nossos foi acusado de bruxaria.
Os alunos inquietaram-se. O vice grão-mestre subiu ao lado de Jya e começou a explicar a situação.
- na manhã de ontem, o bar Ou Yang foi destruído e houve muitos mortos. Não se tem noticia do mestre Ou Yang e o único suspeito é um aluno de nossa academia. Nossa honra milenar foi jogada aos porcos com essa atitude. E como condiz nosso código, uma conduta má é resultado de uma má educação. O responsável pelo aluno, cujo nome não merece ser pronunciado em publico, será punido.
Um dos sentinelas na varanda fez um sinal para os guardas do palácio de Soray, ao fundo. Segundos depois, surgiram sete homens, seis guardas e um coitado encapuzado e acorrentado, trajando apenas uma calça rasgada nos joelhos. Um poste de madeira erguia-se no centro do pátio. Levaram o homem e o amarraram na coluna de madeira.
Um oitavo homem surgiu por entre a mesma porta de onde vieram os outros, com um capuz e roupas negras, segurando um chicote de couro e ossos com ponta metálica.
- o que verão hoje – entoou a voz de Jya – servirá de exemplo aos professores de nossa academia. Esse homem falhou na missão de discipliná-los. – disse friamente.
O carrasco se aproximou do homem e tirou seu capuz. Douglas estremeceu.
Professor Heilin!
O homem chorava silenciosamente. Estava envergonhado.
- os tempos sombrios se aproximam. Isso é um sinal. Os demônios estão voltando e com eles virão os antigos monstros. – disse um dos ajudantes da biblioteca, que estava ao lado de Douglas.
O encapuzado esperava a ordem de Jya.
- vinte chibatadas. – disse sem cerimônia. O carrasco assentiu com a cabeça e ergueu a mão do chicote. Muitos alunos viraram o rosto, alguns até choravam. Heilin sempre foi um bom homem, um bom profissional. Por que ele? Ele não merecia nada disso, não era justo. E então veio o horrendo som do metal e do couro rasgando as costas do homem. Seu grito de dor apertou o coração de Douglas. Ele também virou o rosto, antes da segunda chibatada.
Ao fim da tarde, o pátio estava vazio e os últimos raios de sol queimavam as costas abertas do professor Heilin, meio jogado ao chão, com as mãos presas ao poste de madeira. Havia alguns guardas espalhados por ai, vigiando o homem. Douglas invadiu o pátio sem autorização e foi vê-lo. O professor tremia, babava de dor e ainda chorava de vergonha. Havia sido humilhado e sua faixa amarela de mentor havia sido arrancada. Foi destituído do cargo.
O garoto não sabia o que dizer. Era uma imagem forte e triste. As feridas estavam começando a feder.
E então Heilin começou a murmurar algo.
- D...Doug...
- estou aqui mestre – disse a beira das lagrimas, ajoelhado perante o corpo do homem, e a pequena poça de sangue que o rodeava.
- O que... O que está acontecendo?
O Mestre dos Livros adentrou o pátio. Esse homem sempre sabia de tudo o que acontecia, mas sempre se mantinha fechado em seu mundo particular. Sua mente é um mistério. Em passos jeitosos, se aproximou dos dois, ali no centro do pátio. Mantinha uma expressão distraída, como se fosse um pássaro de asa quebrada ao invés de um homem com as costas rasgadas e sangrando.
- esses demônios... – disse em tom descontraído – só trazem sofrimento.
- o que você disse? – Douglas fazia força para erguer o rosto e afastar o olhar do homem no chão.
- os demônios estão chegando garoto. Sempre começa assim. Um pequeno atentado aqui e ali, e alguns punidos. Depois os mestres desaparecem... E ai, chegam incontáveis hordas de demônios que transformam o mundo como conhecemos num inferno. A diferença é que, dessa vez, não teremos Bess ou Bei Si para nos salvar. Você passou o dia na biblioteca garoto. E o livro que estava lendo é um tanto interessante. Venha comigo.
- não posso deixá-lo aqui. Não posso. – disse o garoto, referindo-se ao ex-professor.
- você não pode fazer mais nada por ele.
Heilin estava sussurrando algo. Não dava para entender o que dizia, mas quando Douglas se preparava para levantar, o homem segurou seu braço.
- Doug...
Na outra mão do professor, uma fumaça azul revelou uma chave.
- Pegue-a Doug...
A chave do quarto dele.
- Existem... Existem coisas que... Que não ensinamos aos alunos...
O professor desmaiou. Perdeu muito sangue. Agora o sol já não queimava suas costas.
- para onde vamos, Mestre Mattos?
- para a Sala do Silencio. Evite mais perguntas.
A sala do silencio era onde guardavam as relíquias da Dinastia do Sol. Apenas ao mestre dos livros, aos monitores superiores e ao Grão Mestre é permitida a entrada. É como uma biblioteca dentro da biblioteca. Douglas não era ninguém em especial para ser permitido a entrar nessa sala, mas o fato de gostar de livros chamava a atenção do Mestre Mattos.
Depois de caminharem calados até a Sala do Silencio, Douglas disse algo, esquecendo a recomendação do Mestre.
- o que será que ele quis dizer?
O mestre o olhou de soslaio.
- como assim?
- coisas que não se ensinam aos alunos. O que poderia ser? – o garoto não se agüentava de curiosidade. Também estava preocupado. Uchiha não aparecia desde a manhã de sábado. O Mestre Dos Livros se ajoelhou e pôs uma das mãos no ombro do pequeno.
- vocês crescem treinados para matar monstros e demônios. Passamos nossa história, nossos conhecimentos e tudo mais de geração em geração, tudo para que possamos manter o mundo livre dessas criaturas.
Douglas não compreendia onde ele queria chegar. Mestre Mattos prosseguiu:
- mas existem magias para matar homens.
- magias para matar homens? Mas homens se matam o tempo todo.
O mestre deu um risinho. A inocência do aluno em relação a matar e a morrer não iria deixar que alcançasse o ponto de vista do membro do conselho.
- estive lendo sobre a antiga guarda – Douglas puxou assunto, mesmo sabendo que o mestre preferia o silencio. Ainda sim, era o tipo certo de conversa que o homem gostava de ter com alguém. – o que aconteceu com todos?
Os dois chegaram à porta, que se distinguia dentre as várias portas de metal negro naquele corredor, e de dentro das largas mangas de sua toga alaranjada retirou um molho de chaves. Enquanto separava a chave certa, respondeu:
- uma hora, a natureza de um mortal nos indica que já não agüentamos mais todo esse esforço. Nosso corpo cansa. E então, reconhecemos que já basta.
- todos estão aposentados?
- os que sobreviveram, acredito que sim. Os nove guardiões de Bei Si... – suspirou – três morreram em combate, essa é a verdade. Um deles se aposentou, o outro desertou, e ainda há um que vive exilado numa floresta de bambus. E há também o fantoche do nosso querido capitão de proteção.
- e os outros dois, mestre?
- esses dois são um mistério – franziu a palavra mistério, como quem está sendo irônico – ainda hoje, são grandes nomes da Dinastia do Sol. Devem estar no sul, na guerra contra a Dinastia de Lenço Preto.
Os olhos do garoto brilharam. Então eles existem mesmo.
Depois disso, não falou mais. Mestre Mattos abriu a porta e uma aura alaranjada os engoliu, enchendo a escuridão da biblioteca de vida e revelando que, o lugar era ainda maior do que imaginavam.
- pela graça de Bess, o que é isso? – Douglas não acreditou no que viu dentro da sala.
* * *
O navio cortava as densas nevoas da costa com seu casco prateado. Velas negras se içavam pelos três mastros, em sinal de luto. Era um navio mercador, mas pela aparência e tamanho monstruoso, provavelmente foi um galeão de guerra que está sendo reaproveitado. O cais aos poucos foi surgindo através da nevoa, que foi ficando mais fina até ser completamente deixada para trás. E então, novamente, contemplaram a magnífica cidade de neve. Ficava ainda mais esplendida quando vista do mar. O palácio colossal tinha uma torre à altura de seu cume e outra torre, separada, mas vizinha ao edifício, também gigante e linda, com uma arquitetura típica do povo das ilhas de neve. Tinha um jardim de plantas que não existem no oeste, onde ficam os grandes impérios. Ao fundo, um conjunto de modestas feiras e mercados e numa pequena ilha ligada a cidade por uma ponte estavam as habitações. Era uma cidade populosa, pois terreno da ilha visto ao longe, era um aglomerado de telhados azuis e cinzas.
Na beira da proa, a garota suspirou e murmurou para si mesma.
- Xian Duo... Já estava ficando com saudades. – disse logo depois de inspirar o gelado ar da manhã.
Não tardou muito até que o navio aportasse no ancoradouro. Os marujos jogaram as cordas e começaram a descer. Logo, vieram os ajudantes do cais e encaixaram a ponte móvel na lateral do navio, para que sejam descidas as cargas. A garota ruiva foi a primeira a descer, mas sem a necessidade das cordas. Saltou da proa de quase quinze metros de altura e aterrissou de pé, perfeitamente bem. Outras duas garotas a acompanharam, saltando da mesma forma para fora da embarcação. Dois homens, um jovem com cabelos completamente brancos e picotados e outro mais velho e mais baixo, ambos de terno, esperavam pelas garotas, próximos ao gigante armazém do porto.
A ruiva os avistou ao longe, e logo abandonou sua postura valente, correndo para os braços do homem de cabelo branco. A garota tinha um espírito guerreiro, uma alma valente, isso era notório. Mas naquele momento, era apenas uma criança. E não devia ter mais de 15 ou 16 anos. Seus cabelos ruivos e lisos estendiam-se até quase a cintura. Olhos verdes, corpo esbelto e postura ereta, características que chamam a atenção de muitos “pretendentes”, e acima de tudo, estupradores. Mas o que distinguia a pequena ruiva de uma criança, eram a espada, menor que uma montante e maior que uma katana, e uma espécie de garrucha, trabalhada em madeira e metal, ambos oriundos das espécies mais nobres.
- não agüento mais. Não agüento... – disse, abraçando o rapaz.
- velas negras foram içadas. Por quê? – ele perguntou, com delicadeza na voz.
- Wu Lia está morto. Ele... Salvou-nos em Meilin... Foi levado por monstros da neve – disse, já soluçando e com lagrimas prestes a escorrer dos olhos. – significa que Mah é a nova capitã.
As outras duas garotas aproximaram-se calmamente. A mais velha, alta e de cabelos castanhos, olhou para o homem mais baixo e disse:
- perdemos homens importantes em Meilin. Espero que nos reembolse por isso.
- e quanto à carga?
- trouxemos toneladas de materiais raros. Também trouxemos especiarias, algumas que nem mesmo eu havia experimentando antes.
- algo mais? – o homem estava bastante calmo.
- trouxe algumas crias de monstros de neve. Faça bom proveito delas. Mas antes lhe digo que pagará a mais por isso. Mascotes não faziam parte do nosso acordo.
- que seja. Me mostre essas crias, Mah, não tenho o dia todo.
A garota de cabelos castanhos sorriu para o homem.
- é Senhorita Mah para você.
A outra garota se intrometeu.
- vou levar a Nyhal para casa. Se cuida, Mah. – olhou para Kolt, o homem dos cabelos brancos. – vamos. Foi uma longa viagem, preciso descansar.
Era noite e a Senhorita Mah ainda não havia retornado. Nyhal dormia e Mile olhava para o mar, da sacada da casa.
- não consegue dormir? – disse uma voz vinda de dentro do quarto.
- não é isso. Gosto de ficar acordada... Tenho mais paz aqui...
- no que está pensando? – Kolt surgiu na sacada.
- não quero mais essa vida. Nunca quis e nunca tive escolha. Não entendo... Porque temos que fazer o que fazemos... Sinto vergonha. As pessoas nos vêem como bandidas. Todos querem um pedaço da Mah... E a Nyhal... Esses riscos, ela.. Ela...
- ela não é mais uma criança, Mile. Já sabe se virar. – Kolt a abraçou por trás e beijou seu pescoço.
- eu sei. Mas... Isso tudo perdeu o sentido. Quero ir para Dong Xuen. Lá podemos recomeçar, podemos fazer fortuna...
- ficou maluca? O oeste é cheio desses demônios. Dizem que estão voltando. E lá é um inferno de quente. Não veremos mais a neve lá.
- podemos nos acostumar com isso. – ela se virou e ficou de frente para ele.
- imagina o que a Mah vai achar dessa idéia. – ele aproximou seu rosto do rosto dela. Seus lábios estavam prestes a se tocar.
- nós vamos embora, prima?
O beijo foi interrompido. Mile olhou para Kolt e em seguida para a pequena Nyhal. Foi até a garota e afagou seus cabelos. Em seguida, voltou a olhar para o mar. Seus olhos brilharam e ela deu um suspiro.
- sim, Nyhal. Nós vamos embora.
- ISSO É UM ABSURDO. NÃO PAGO 500 MIL PRATAS NISSO NEM QUE AFUNDEM MEU NAVIO.
- olhe para eles, Bartel. São legítimos e estão saudáveis. Quando crescerem, serão os mascotes mais fortes de Xian Duo. Nunca antes alguém havia capturado um monstro de neve. Estou lhe vendendo os cinco únicos. Qualquer outro aceitaria. Se recusar, consigo um comprador em minutos.
Bartel, o homem baixo, olhou para Mah com infelicidade e uma notável raiva.
- você me quebra Mah.
- você compra porque quer. Eu só estou de dando escolhas. Quem as faz é você, somente você.
O homem abriu uma gaveta de sua escrivaninha. Era uma chave, meio verde, de metal.
- divido meus números nessa quantia exata e então separo cada pacote de prata em um cofre. A senha desse é tormenta. – jogou a chave para Mah, que em reflexo rápido, pegou. A garota sorriu para o homem e disse já de costas em direção a saída:
- é um homem esperto, Bartel. Por isso adoro negociar com você.
Do lado de fora, já era noite. A garota perdeu a noção do tempo. Olhou para o céu, inspirou o confortável cheiro das Sementes de Gelo, arvores que, segundo o povo da neve, atendem às preces dos homens. Seguiu seu caminho para o guarda-volumes. Antes dela, havia um homem lá, que entregou a chave para um senhor meio gordo, e sussurrou algo em seu ouvido. O gordo pegou a chave e abriu a porta, que revelou uma sala enorme, cheia dos mais variados objetos. O homem entrou e foi breve, saindo com algumas tralhas de cozinha.
Mah chegou perto do homem gordo, entregou-lhe a chave e sussurrou “tormenta” em seu ouvido. O homem pegou a chave, abriu a porta, e agora, a sala que estava por trás do portal de madeira era completamente diferente, com objetos diferentes. Na verdade, havia apenas sacos e mais sacos, carregados com moedinhas de prata. A moça adorou aquilo.
Eram quatro horas da manhã quando a Senhorita voltou para casa.
- Nyhal, Mile, acordem, temos que... – olhou para Kolt deitado na mesma cama que Mile. – o que ele faz aqui?
- está dormindo, não vê? – respondeu Mile, irritada.
- ele é do Palácio Real e nós somos contrabandistas. Quer ser presa? Vamos, não o acorde, apenas deixei-o ai. Estamos indo para Duo-La.
- a viagem para Duo-La custa mais de 20 mil pratas. Como pretende ir? – Mile estava meio sonolenta.
- consegui o dinheiro. Agora vamos, temos contas por acertar.
Mah foi para seu quarto e fez uma pequena mala às pressas. Depois acordou Nyhal e saíram da casa. Estava nevando lá fora, mas era uma neve fina e suave, nada demais. Mile ficou por ultimo na casa e antes de sair com sua mala já pronta, voltou para o quarto e deu um beijo na testa de Kolt, que ainda dormia.
- o navio já está pronto. – disse, já do lado de fora.
- por que decidiu sair assim, tão repentinamente?
- temos que resolver isso o quanto antes. Essa é nossa oportunidade.
- e a Nyhal? Devemos deixá-la com Kolt.
Mah virou-se para Mile. Ambas estavam irritadas.
- quantas vezes tenho que repetir que ela não é uma criança? Em Meilin, Nyhal matou mais monstros do que os nossos homens. Ela vai ficar bem.
Foram a pé para o porto e chegaram dez minutos depois. Boa parte dos homens nem havia saído do navio. Mah acordou a tripulação e manobraram com o galeão para fora do ancoradouro.
Aos poucos, a cidade foi ficando para trás. Agora só se podia ver a ponta do Palácio Azul. Iriam navegar sem se afastar muito da costa. Duo-La Neve era no mesmo continente, que nada mais era alem de um arquipélago. As ilhas eram gigantes, colossais e muito próximas. Por isso, mais parecia um só pedaço de terra do que vários.
No mar, perde-se a noção do tempo. No leste, o Sol emergiu das infinitas águas do Mar Gelado. A tripulação foi saudada por sua luz, que revelou as montanhas de gelo a Oeste. Avistaram a costa de Duo-La e ancoraram ali perto. Desceram três pequenos botes a remo e remaram até a praia de gelo. Andaram por horas até encontrar uma escadaria que levava a um castelo que lembra muito a arquitetura do Oeste, mais precisamente nas províncias do Sul. Era um castelo todo de vidro, algo que não se via comumente. Uma construção perfeita e enorme. O castelo aparentava ser ainda maior que o Palácio Azul. Mah sacou sua garrucha metálica.
- esse será o acerto de contas. – disse desafiadoramente.
* * *
Do outro lado da porta, o chão acabava em um abismo, alguns passos à frente. Desse abismo, o Mestre dos Livros e Douglas tinham vista para uma Dong Xuen muito mais bela e gloriosa do que a atual metrópole. Viram palácios e castelos que hoje não existem, e no céu alaranjado, dragões voavam mansos. O Sol jazia nas montanhas, no mesmo tom em que estava o céu.
- estamos vendo o futuro? – perguntou Douglas, inocente. – essa Dong é muito mais avançada.
O mestre sorriu.
- estamos olhando para o passado. Antes da chegada dos primeiros demônios. Mas agora, basta disso.
Bateu com as palmas da mão, uma na outra, e toda aquela visão virou uma fumaça azul que entrou pelas mangas do mestre.
Naquela sala, o mestre sacou uma pedra perfeitamente circular e plana.
- isto é uma pedra quebrada da sabedoria. Não é das melhores, mas vai servir.
- por que está fazendo isso? Você mesmo disse que não sou ninguém.
- o garoto que foi preso em Dong Xuen. Você o conhecia? – perguntou o mestre, após uma breve pausa.
- não faço idéia de quem seja.
- ao menos ouviu o nome?
Douglas não respondeu e o Mestre Dos Livros prosseguiu:
- os sussurros apontam para Uchiha Lucas.
Douglas tremeu. Uchiha. Não podia ser. Uchiha associado com magia negra? Algo estava errado.
O mestre continuou:
- não vá para Dong Xuen. Sei que é isso o que está pensando. Em breve, esta academia será atacada. Mas não pelas tropas da Dinastia de Lenço Preto. Estou falando de monstros e demônios. Não teremos tempo de avisar a todos os alunos, e você deu sorte de conhecer o único que deve saber algo a respeito dos ataques. Sei de muitas coisas garoto, não me olhe assim. Na hora certa, você deverá partir para Loras. Ouviu?
- sim, mestre... – Douglas estava perdido. Não entendia nada, aquilo não fazia sentido.
- não conte isso a ninguém.
Douglas passou um tempo em algum lugar do pátio, pensando na vida. Depois se lembrou da chave de Heilin. Então, no fim da tarde, foi até o Palácio de Soray, que é restrito aos alunos. No portão, foi barrado por dois guardas. Deu meia volta e foi para a lateral do palácio. A primeira janela estava a três metros. Não era um desafio para o garoto. Saltou e andou sobre a parede e então, estava no fim do corredor vazio. A maior parte dos professores ainda está lecionando á essa hora. Douglas estava sem aula, pois a época de formatura paralisa todos os cursos intermediários. Subiu mais um andar e chegou ao quarto de Heilin. A chave entrou na fechadura, superando o receio do garoto. Abriu a porta e estava tudo perfeitamente normal. Vasculhou o quarto todo e enfim encontrou um baú de madeira embaixo da cama. A chave verde também abria esse baú. Parecia, na verdade, uma espécie de chave mestra. E então deparou-se com o conteúdo da coisa. Era um pequeno cajado, de madeira nobre e aço Loraniano Dourado. Um pequeno pergaminho enrolava-se sobre o bastão. Douglas retirou o pergaminho com cuidado e leu um pequeno trecho:
“Potras Ventra - atormenta a mente por alguns momentos, revelando suas sombras e pesadelos. Não há homem que seja imune a essa magia. Precisa apenas apontar para o lugar certo. Nunca esteja perto de algum material metálico ou algum espelho.” Potras Ventra significa tormenta da mente no antigo Dialeto Loraniano. Terminou de ler e pegou o cajado. E então sentiu uma vibração em seus ossos e quando abriu suas mãos, o bastão não se soltou. Parecia estar colado. Pôs a outra mão para uma nova investida contra o objeto que desafiava a gravidade e esta também colou. Encostou a coisa no chão e pousou o pé sobre ela, e ao fazer força, finalmente se livrou do cajado. Olhou para a palma das mãos e ao virar para ver as costas das mesmas, notou que suas unhas estavam ficando azuis. Assustou-se, e correu para o banheiro. Derrabou um pequeno balde de água para lavá-las, mas não parecia ser tinta. Ouviu passos no corredor. Alguém deve ter ouvido a barulheira que causou. Rasgou a roupa de cama que estava dobrada ali perto, cobriu o cajado e pegou o pergaminho. Ia saltar pela janela com os objetos, mas um monitor rompeu quarto adentro.
- o que está fazendo? – perguntou desconfiado.
Douglas ficou sem reação. Já estava com um pé do lado de fora. Então, voltou para dentro do quarto e escondeu as mãos.
- o que você tem aí, moleque? – o monitor ia descobrir o cajado. Provavelmente iria tocar nele e sua mão também ficaria grudada. O garoto seria açoitado, e assim que descobrirem que a arma era de Heilin, este seria açoitado também. Pensou numa saída. Não poderia usar técnicas de fuga contra um monitor. Eles são treinados contra todas elas.
Douglas ergueu o dedo apontando para a cabeça do rapaz e gritou no mesmo momento:
- Potras Ventra! – e de seu dedo saiu um raio de luz negro com reflexos quase rosados que correram contra a cabeça do monitor, atirando-o ao chão e adentrando sua mente. O garoto aproximou-se do homem caído e viu que parecia dormir, mas de olhos abertos.
- coisas que não se ensinam aos alunos – disse para si mesmo.
Pulou da janela. Pouco depois, desceu até uma vila no Planalto do Sol Nascente, único lugar fora da academia permitido aos alunos. Douglas tinha uma incrível facilidade para escalar prédios e casas. Vivia sobre o telhado delas, quase sempre acompanhado de Uchiha. Agora estava sozinho, sentado na beira de um telhado, não muito alto, admirando o pequeno lago ao fundo. Havia uma casinha no centro de uma ilha dentro desse lago. Era onde morava Jia Lao Shi, um renegado do antigo conselho da Academia Estrela de Fogo.
Estava pensando a respeito de Heilin. Foi açoitado por que um aluno havia sido acusado de usar magia negra. Talvez Uchiha seja inocente. Mas Douglas realmente usou magia negra. Aquilo era bruxaria, fácil de identificar. Quando descobrirem, o garoto seria condenado e expulso.
- pois é Heilin. E agora? – disse baixinho.
A Taverna era um lugar agitado. Naquela noite, havia garotas esbeltas exibindo suas belas pernas no palco, acompanhando a musica agitada da banda que tocava ao fundo. Homens embebedavam-se e riam monstruosamente, alguns jogavam e apostavam, e quase sempre, nessa roda de jogos, alguns saiam lutando até ambos caírem bêbados no chão. Nick aplaudia ao ritmo da musica, admirando de perto as dançarinas no palco e Kyshme conversava com antigos amigos, próximo ao bar. Selenium estava sentado, com a cadeira equilibrada em dois pés e por sua vez, apoiou os seus sobre a mesa de mogno, onde estava um corno de cerveja vazio. Naquele canto isolado da taverna, a sombra cobria metade dessa mesinha e também, todo o rapaz, deixando a vista da luz apenas suas botas negras e sujas.
Esse homem era de longe, o que mais chamava atenção. Sua aparência física era considerada por muitos, sobre-humana. Olhos dourados e cabelos leve e naturalmente azulados não são comumente vistos por ai. Seus lábios têm um tom entre azul e lilás. E os mitos sobre esse cavalheiro da Dinastia do Sol são incontáveis. Era freqüente esse tipo de conversa em tavernas. Em geral, ouvia-se sobre um suposto pacto com demônios, ou de sua origem divina. Contudo, esse aspecto físico é típico dos nascidos na mítica Terra Das Ilusões. Na época dos seis anciões, esse era um lugar próspero e desenvolvido, mas com a chegada dos monstros e demônios, e com eles a guerra que originou Dong Xuen e as seis academias, o lugar se transformou em ruínas e desertos que abrigam antigos demônios. Por isso era difícil conhecer algum descendente direto de antigos habitantes dessa cidade arrasada. Eles chamavam esse povo de Lazuli.
Selenium encarava uma moça, bem acompanhada de alguns rapazes e lindas amigas. O cavalheiro sabia ler a alma dos homens. Apenas um cruzar de olhares bastava para que identificasse seu caráter, seu passado e ainda, suas intenções. Mas a forma como encarava a garota era diferente. Já havia descoberto que ela não estava ali para dançar, jogar ou beber. Mas seus cabelos negros e ondulados chamavam tanta atenção... Seus olhos escuros como a noite pouco antes da alvorada, olhos meigos... Isso o incomodou. Tratou de desviar o olhar para as dançarinas.
A guarda imperial vive enviando pequenas patrulhas periodicamente na taverna. Nunca acontecia algo demais, apenas alguns beberrões advertidos aqui e ali.
Na mesa de jogos, alguém estava se dando bem. Olhares desconfiados começaram a ser avistados e gritos de comemoração mais intensos. Era um pequenino bem vestido. Devia ser algum aluno ou coisa do tipo. A Antiga Taverna não é lugar para pequenos. O garoto metia-se entre inúmeros brutamontes e os desafiava no tal jogo.
Foi um susto geral quando a guarda imperial rompeu arrombando a porta da taverna com espadas em punho. Um homem que se diferenciava dos outros através do uniforme olhou de soslaio para a mesa de jogos. Devia ser algum comandante.
- peguem-no – gritou apontando para o garoto das apostas. Selenium não se mostrou surpreso. Levantou o dedo chamando uma serviçal, que lhe deu mais um copo cheio.
Três guardas avançaram lentamente na direção do pequeno. Este pegou seu dinheiro e tentou correr para os fundos. Mas outro guarda já havia se interposto na porta. Então o rapaz deu meia volta exibindo hábeis movimentos, e catou uma cadeira do chão, arremessando-a contra a vidraça e saindo pela janela. Os outros, pouco fizeram alem de observar, e alguns caiam em gargalhadas. A cadeira de Selenium agora estava vazia, mergulhada nas sombras da taverna.
Os guardas montaram e armaram suas bestas. Naquela rua, o jovem escalou um casebre ali perto, e já no teto, escalou ainda mais uma casa ao lado. Acompanhando o garoto correndo no topo das casas geminadas, um dos guardas preparou sua besta e a apontou para o rapaz. Fez o disparo e acertou seu pé, fazendo-o tropeçar e cair, rolando até a borda daquele telhado. Antes da queda, que lhe custaria muitos ossos e com certeza as duas pernas, agarrou-se na laje. Outro guarda mirou sua besta. Talvez fosse apenas derrubá-lo, talvez tornasse o tiro letal. Mas nada aconteceu quando disparou. A flecha que ia cortando o vento na direção do pequeno simplesmente sumiu.
- algum problema, senhor? – disse Selenium, saindo das sombras de uma viela.
O homem viu a insígnia da dinastia do sol no sobretudo do Cavalheiro.
- este jovem está sendo procurado pela guarda imperial por vandalismo, devemos prendê-lo na casa de sombras, como nos foi ordenado.
A temível casa de sombras, pensou. Era, realmente, um lugar horrendo. Uma espécie de solitária, mas coletiva. Lá era onde colocavam os mais insanos e doentios bandidos, ladrões e estupradores, condenados a ficar confinados por anos à deriva das sombras. A loucura tomava conta desses condenados, e os relatos do que acontece naquela casa são facilmente achados em histórias de terror que se contam ao redor de fogueiras, ou em antigos livros confiscados pela guarda imperial.
Então o outro cavalo, que havia sido deixado para trás, alcançou o restante do grupo. O garoto acabou caindo, mas Selenium o segurou e o manteve em pé, imobilizando-o com a mão em seu ombro. Seu pé estava vazando sangue e a flecha ainda estava lá. Sua bota ficou quase por completa vermelha. A dor devia ser infernal.
- diga-me senhor comandante, o que leva um jovem de não mais de dezesseis anos a ser condenado à casa de sombras? – disse o Cavalheiro. O garoto estava ficando inquieto, intimado pelas bestas apontadas para o seu rosto.
- este pirralho destruiu nosso bar. Foi o único que estava presente na hora, só pode ter sido ele.
- bar Ou Yang você diz? Destruído?
Ainda não eram motivos para uma pena tão grave.
- e alguém morreu ou ficou ferido? – disse calma e friamente. Selenium não era do tipo que exibia expressões ou sentimentos tão facilmente.
O Senhor Comandante olhou para o garoto.
- este verme matou dois de nossos superiores que almoçavam lá. E ainda encontramos incontáveis corpos carbonizados! Jovens alunos, garotos inocentes! Esse pequeno é um monstro, merece ser punido! – rosnou, perdendo a paciência.
- por que eu faria algo assim? – intrometeu-se Uchiha. – eu só estava almoçando, não fiz nada, absolutamente nada. Meu único erro foi ter rejeitado a comida da minha cantina.
Selenium sabia que o pequeno era inocente. Sua alma era pura.
- você foi visto por vários matando inocentes. Todas nossas testemunhas dizem o mesmo. – prosseguiu o Senhor Comandante Mota.
Selenium olhou para o garoto, que por sua vez, olhou de volta para o Cavalheiro.
- diga para eles senhor, diga que não dão armas com gume para alunos – disse desesperado.
- não posso. – respondeu Selenium – levem-no.
O garoto começou a gritar e a chutar, seu pé jorrava sangue da flecha atravessada, mas o desespero o fez ignorar a dor. Gritava que era inocente, alegava, mas os violentos guardas o silenciaram com uma bofetada na cara, usando o pomo da espada. Desmaiado e babando sangue, amarraram o jovem no cavalo e foram embora para o centro da cidade. Selenium assistiu aquilo tudo calado.
Mais ou menos uma hora depois do pequeno vândalo fugir alucinadamente, Kyshme e Nick decidiram que já era hora de deixar a taverna. Faltavam três horas para a alvorada e precisavam descansar. Procuraram por Selenium em todos os cantos, mas só quando saíram que esbarraram com ele naquela rua. Montaram seus cavalos, que foram dados sob as ordens de Martini, Senhor Intendente da Dinastia do Sol. Pouco conversaram sobre o que tinham visto. Não era grande coisa, afinal, nunca houve uma noite pacata naquela taverna. O sobretudo de Selenium estava manchado de sangue, mas mesmo na escuridão da rua deserta, Kyshme notou isso. Não ousou perguntar. Estavam passando no Palácio Imperial quando Nick parou para ajeitar as rédeas. Aquela praça era bem iluminada assim como todo o palácio. Naquela mesma hora, uma carroça negra e comprida, puxada por seis alazões também negros parou em frente à grande porta da magnífica sede do império. Kyshme e Selenium pararam para admirar, montados, enquanto Nick pouco se importava. As rédeas eram sua preferência. As quatro portas da carroça, com detalhes dourados, se abriram, e de lá saíram figuras um tanto interessantes. Todos se pareciam com Guardas Imperiais, exceto um. Este se vestia todo de negro e nas costas carregava uma manta comprida e bem trabalhada, com a insígnia de Dong Xuen. Estava muito bem vestido, e alem da espada embainhada, escondida entre as vestes e a manta, carregava uma magnífica Montante – uma espada de duas mãos – feita de aço Noraniano, o mais nobre dos aços, feito na Cidade Da Saudade. Caminhou com ar superior por entre os degraus do palácio até ser recebido na porta por Puma e Feng.
- deve ser o novo capitão da guarda. – disse Kyshme. – e veio bem preparado. Pelo visto, já deve estar ciente do que o aguarda nesse cargo.
Selenium riu suavemente.
- esses demônios... Adoram homens com manta. Esse aí não durará muito.
- precisa de ajuda Nick? – Kyshme estava ficando impaciente.
- não, estou perfeitamente dando conta dessa maldita rédea.
Pouco depois, saíram dali e foram para o pequeno castelo da Dinastia do Sol, próximo a muralha da cidade.
O homem de preto entrou no palácio, reverenciado por Puma e por Feng. Os outros quatro homens foram levados para o quartel atrás do Palácio. Guiaram o cavalheiro pelo corredor, até o Salão principal. Puma abriu a porta da direita e Feng da esquerda e se posicionaram ali perto.
Havia um homem ensangüentado, acorrentado, seminu e de joelhos. Na mesma sala estavam os mais importantes ministros e conselheiros, entre eles Bushido, mestre das armas e Lucário, mestre da moeda. Feng andou vagarosamente para perto do homem ajoelhado.
- este homem é um desertor. Ele foi capitão da Guarda Imperial e você o substituirá. Agora cabe a você julgá-lo, para provar que tem potencial. – disse Feng para o homem de preto.
- você sabe a pena dos desertores, senhor? – disse Puma, desafiadoramente.
É claro que o homem sabia. Todos sabiam. Desembainhou a Montante e a segurou com apenas uma mão. O metal de quase três quilos tiniu no chão. A Lendária Espada Pesada, invejou Puma. Avançou contra o homem ajoelhado e ergueu a espada sobre sua cabeça. E agora ia desferir o golpe fatal. Quando desceu a arma até o frio da morte eriçar os pelos da nuca do homem ajoelhado, o golpe foi interrompido.
- espere! – gritou Puma. – não vai permitir que diga suas ultimas palavras?
O homem de preto encarou-o.
- prossiga – disse para o condenado.
A princípio pensaram que ele não falaria nada, mas logo começou a gaguejar e murmurar palavras.
- todos... Todos nessa sala...
Alguns ali começaram a trocar olhares, e o pobre condenado continuou.
- todos... – riu – estão mortos.
Em seguida, o aço verde azulado da Espada Lendária cruzou seu pescoço e sua cabeça caiu e rolou no chão. O corpo esticou-se no carpete vermelho e o sangue jorrou nas botas negras do homem sinistro.
- como o chamam na Terra Da Luz perdida? – perguntou Feng.
Embainhou a espada melada de sangue nas costas e ergueu a cabeça encarando o Capitão de Proteção.
- Sargento Zero.
Feng fez uma breve pausa e então prosseguiu:
- Sargento Zero, eu o nomeio Capitão da Guarda Imperial. Deverá fazer o juramento diante de seu exercito e de sua patrulha, deverá vestir o manto Imperial. Seu dever será sua prioridade e sempre me obedecerá.
- sim, senhor Capitão. – respondeu obediente.
Quando foram dispensados, os ministros e conselheiros voltaram a seus afazeres. Lucário foi apressadamente ao banheiro. Apoiou-se na pia e vomitou. Quando recuperou as forças, lavou o rosto e se olhou no espelho. Pouco tempo. Já devem estar chegando. Estão atrasados. Estão atrasados, isso. Eles vêm, eu sei que vêm, só estão atrasados. Secou o rosto na veste azula – negra. Voltou para seus aposentos e desesperadamente pegou numa pena e começou a escrever uma carta. Recolheu seu corvo da gaiola e amarrou a carta nele.
Na manhã seguinte, Kyshme acordou com fortes batinas na porta do quarto. Levantou e se vestiu para atender a porta.
- Feng, eu não o esperava.
- claro que não – estava sozinho. O Senhor Capitão de Proteção nunca anda completamente sozinho. Em geral, está cavalgando com seus guardas de manto azula-negro. – posso entrar?
- você já está aqui. – Kyshme respondeu em tom sério. – diga, meu amigo, o motivo dessa... Inesperada visita.
- ontem de noite nomeei o novo Capitão da Guarda Imperial.
- já estava na hora. Os vândalos tomam conta da cidade hoje em dia. E o que fizeram com o antigo Capitão?
- o desertor? – perguntou com desprezo – ele teve o julgamento de um desertor e a punição de um desertor.
A morte, murmurou Kyshme.
- estou indo para o Bar Ou Yang. Ou o que restou dele. Quero entender o que aconteceu lá. Você vem?
Kyshme hesitou em responder, mas acabou indo também.
Selenium cheirou o pequeno pedaço de concreto carbonizado.
- fogo azul – disse largando o objeto.
- como é? – perguntou Nick, pouco preocupado.
- fogo azul. Apenas demônios produzem fogo azul. Esse lugar foi destruído por demônios e sobrou pro pobre garoto.
- não acha que se demônios tivessem passado por aqui matando todos, não iriam notar?
- não esse tipo de demônio, Nick. Raposas Malignas entram no corpo dos homens e os levam a fazer coisas horríveis. Isso explicaria muita coisa.
Feng aplaudiu ao fundo, de cima de seu cavalo.
- vejam só nosso Demonólogo. E então senhor imortal, encontrou algo útil?
Kyshme olhou de soslaio para o Capitão. Era um dos poucos que sabiam a verdade sobre Selenium, e Feng abusava disso. E chamá-lo de Senhor Imortal o irritava profundamente.
- eu soltaria o garoto no seu lugar, Senhor Capitão – respondeu o Lazuli. – prender um menor de idade numa casa de sombras pode custar seu cargo.
Feng riu daquilo.
- o garoto fez uma chacina por aqui, ainda existem restos carbonizados por todos os cantos. E esse cheiro de morte que me enjoa. Esse pequeno vai apodrecer nas sombras, guarde minhas palavras.
Os lábios azuis de Selenium se mexeram desconfortavelmente. O rapaz estava irritado. Odiava Feng. Permaneceu calado e se retirou, sem virar para trás enquanto o Senhor Capitão se desculpava sarcasticamente.
Kyshme ficou calado. Feng era um sujeito fácil de irritar, e contrariá-lo era uma estupidez.
- demônios – o Capitão cuspiu no chão – como eu odeio demônios.
Kyshme, Nick e Feng ficaram duas, talvez três horas a fio nas ruínas do bar.
- pobre Ou Yang. Nunca encontraremos um mestre cozinheiro tão talentoso. – disse Nick, em tom seco e triste.
Kyshme ignorou o comentário.
- vou voltar para os palacetes. Arrumarei nossas coisas.
- pretendem partir?
- a formatura é em duas semanas, Feng. Precisamos tomar rumo a Estrela de Fogo o quanto antes possível.
- formatura.. Tinha me esquecido completamente. Fico surpreso que vocês foram convidados. Mas não posso deixar que partam.
Kyshme se surpreendeu com o que ouviu.
- O QUE? COMO ASSIM?
- abaixe o tom de voz rapaz. Não posso deixar que partam. Os ataques de Demônios têm sido cada vez mais freqüentes. Estamos planejando uma investida contra as Terras Prósperas. Queremos acabar com essa ameaça de uma vez por todas.
Agora era a vez de Kyshme rir.
- quer colocar homens nas Terras Prósperas? Faça-me rir, senhor Capitão. – virou as costas – vamos Nick, o tempo está fechando.
- NÃO VIRE AS COSTAS PARA MIM – gritou Feng desembainhando bruscamente a espada e apontando-a para Kyshme, que se virou sem dar importância para o metal precioso quase roçando seu rosto.
- ou o que? – desafiou – vai mesmo ferir um cavalheiro da Dinastia do Sol? Escute, senhor Capitão de Proteção, minha dinastia está muito acima desse império. Enquanto você não carregar a insígnia Solar no peitoral da sua armadura, não será você que me dirá o que fazer.
Feng abaixou os ombros e embainhou lentamente a espada. Kyshme virou-se novamente e já estava se preparando para montar.
- Kysh.. Eu peço... Por favor... Sua dinastia está ocupada com as próprias guerras, vocês são os últimos com quem podemos contar. Por favor, Kysh...
Ele está com medo, pensou encarando a expressão no rosto do Capitão Feng.
- descarte qualquer plano que você tiver. Levar homens para as Terras Prósperas é suicídio. –disse, por fim, o Cavalheiro.
- quero você no meu conselho Kyshme.
Isso irritou Kyshme profundamente.
- não sou eu quem você deve chamar. Nós dois sabemos muito bem quem seria melhor para combater demônios.
- ele não pode ser do conselho imperial. Ele é um Lazuli.
Agora o cavalheiro encarou o Capitão de Proteção.
- você me dá nojo, Feng.
Montou no cavalo.
- vai nos ajudar? Vai ajudar seu reino?
Nick riu de leve, montado no cavalo ao lado.
- vamos nos reunir no Palácio do Senhor Bei Si. Selenium estará lá. – disse Kyshme.
- pretende por o Lazuli na presença do vosso Diretor?
- este não é meu reino, senhor. É do vosso Diretor. Se quer mesmo salva-lo, dará ouvidos a um Lazuli.
Nick e Kyshme partiram ao trote dos cavalos.
Observava o Sol se escondendo no lago gigante ao fundo, muito atrás da muralha. Seus olhos dourados podiam observar-lo pelo tempo que fosse, sem que se incomodassem com o excesso de luz. Mas agora, o gigante símbolo da mais poderosa Dinastia dos cinco impérios estava num tom alaranjado e já não incomodava mais a vista de homens normais. Olhou um corvo preto que pairou em frente à torre e depois pousou na borda da cobertura, perto de onde Selenium estava sentado. Um comportamento estranho, já que corvos não gostam de homens e a presença de um Lazuli desconforta qualquer animal.
- olá, Altharie. – disse ao corvo preto.
Sombras negras circularam o corvo e logo, a ave criou pernas e braços, e por entre a roda de sombras já se via um rosto humano.
- faz muito tempo... – disse o corvo humano. Agora estava quase um humano, se não fosse o gigante par de asas negras em suas costas nuas.
Selenium deixou que terminasse a frase.
- que não vejo o Sol. – completou o demônio.
- está o vendo agora.
- não esse sol, meu caro Lazuli. Estou falando da Dinastia. A muito tempo não sinto o gosto de sangue dos guardiões sagrados.
- a Dinastia do Sol está em guerra com a Dinastia do Lenço Preto. Não vai vê-los tão cedo no Norte.
Altharie suspirou.
- essas coisas não nos contam.
- vocês andam por esses lugares todas as noites, visitam bordeis e tavernas como se fossem homens, e ainda vejo muitos encantando mulheres humanas. Com essa convivência, acho difícil esperar que estejam por fora das coisas... Agora, conte-me, velho amigo, quem é a moça dos cabelos negros e ondulados?
O demônio alado pareceu surpreso.
- do que estás falando?
- na madrugada de hoje, na Antiga Taverna, eu vi uma garota um tanto interessante. Linda, por sinal, mas não era humana. Sua alma era negra.
- Sese... Não sabe que é feio espiar na alma dos outros?
Selenium deu um risinho e continuou:
- primeiro uma Enviada aparece na Antiga Taverna, e depois ficamos sabendo que o bar Ou Yang pegou fogo. Diga-me, a garota tem algo a ver com isso?
Altharie não respondeu. O Lazuli prosseguiu:
- quando entrei pra dinastia do sol, fiz meu juramento, e você sabe disso. Sabe que preciso matar todos os demônios que surgem nas cidades da Dinastia. Enviou uma garota porque acha que não posso matá-la. Muito esperto.
O corvo riu.
- lembro da época em que eu tinha que explicar as coisas pra você... Agora vejo que os papeis se inverteram...
- se essa garota não sumir até amanhã, juro que vou matá-la. Nosso Capitão de Proteção me odeia por puro preconceito.
- esses humanos... – interrompeu Altharie, mas logo Selenium tratou de continuar.
- queimar bares e tavernas só piora minha situação.
- terminou? – disse Altharie, em tom brincalhão. – ótimo. Agora me escute. Viktor está irritado. Não são nossos demônios que estão atacando vocês. Seus homens não podem ir as Terras Prósperas. Somos inocentes.
Altharie é um poderoso demônio caçador. Ele é um cachorro louco, mas domesticado. Se o dono decide libertá-lo da coleira, então os humanos terão um grande problema. Demônios são falsos e mentirosos, e o fato de não possuírem alma deixa Selenium ainda mais desconfiado. Tudo é mais fácil quando se pode ler a alma do individuo. Mas Selenium sabia que não estava mentindo. Conhecia Altharie de longa data.
Agora o Sol se pôs por completo e a escuridão estava tomando conta do Norte.
- não mate a garota, Selenium. Ela está aqui por outros motivos.
- posso pelo menos saber o nome dela?
Altharie se levantou. A vista do topo daquela torre, onde estavam, era magnífica. Sombras rodearam o corpo e as asas do demônio e ele foi se desfazendo, e penas negras foram sendo levadas pelo vento. E ouviu um sussurro:
- Andreza.
Três
A luz do archote tremeluzia solitária quase engolida pelo breu que tomava o interior da biblioteca. Douglas era o único sinal de vida dentro da imensidão fria daquele enorme acervo de livros e manuscritos. A biblioteca permanecia na escuridão para conservar melhor os livros e as antigas relíquias que nela são guardadas. Na mesa redonda, onde o garoto se aprofundava nos conhecimentos místicos, havia uma pilha de grossos livros, provavelmente já lidos, e outra pilha, também de livros, provavelmente por ler. Entre essas duas pilhas, Douglas apoiava os braços num manuscrito aberto já na metade. Estava viajando por entre o passado e os tempos de glória da antiga guarda de Bei Si, os nove lendários guerreiros da antiga dinastia, e ainda mais no passado, na época do guardião Bess e seus seis guardiões sagrados, que fundaram as seis academias. Sim, foi um passado glorioso, mas sombrio. Quando os primeiros demônios invadiram os cinco impérios e as sombras rodeavam os homens.
O manuscrito contava muitas dessas histórias, quase todas reais, embora muitas exageradas. Era difícil dizer se o livro era um romance escrito por autores inspirados ao longo dos séculos, ou se era um documento que guardava a história das antigas dinastias e clãs.
No fundo do grande salão de livros, uma porta se abriu, e com ela, um feixe de luz rompeu até alcançar os olhos de Douglas. A forte luz do sol fez a vista do garoto doer, mas logo se adaptou à claridade. Ainda não dava para distinguir as entidades que adentravam a biblioteca, pois estavam contra a luz. Um deles carregava um archote aceso e se aproximou do pequeno leitor.
- mestre Jya está solicitando a presença de todos os alunos – disse uma voz grossa e gravemente séria.
- monitor Lu – disse Douglas enquanto se levantava atrapalhadamente da mesa. Fez uma reverencia e logo se rendeu à curiosidade. – o que está acontecendo? Tropas de lenço preto outra vez?
O homem não respondeu e o garoto o seguiu até a saída. Perto da porta, voltou correndo até o livro e marcou a pagina onde havia parado.
Andaram até o pátio, onde vários alunos estavam em uma formação tradicional, com dez fileiras de vinte. O pátio era uma área enorme, com algumas distrações para os alunos de folga. Era cercado pela enorme Casa Rosa, onde moravam os mestres e monitores da Academia Estrela de Fogo, e seu ancião, Mestre Wu. A casa erguia-se em três andares, com quase cem metros de altura e duzentos metros de comprimento. Realmente, uma magnífica estrutura, modelada a mercê da cultura nortenha das Colinas Vermelhas.
Ao leste, o pátio terminava na varanda do Palácio de Soray, construído há trezentos anos por ordem de Soray, o aprendiz de Wu. Nesse prédio, cuja grandeza pouco se compara a Casa Rosa, moram os professores, os guardas e os soldados. Dentro do pátio, mais ao fundo, havia a cantina. Um restaurante considerável, onde se treinavam quase todos os grandes mestres cucas dos cinco impérios. A maioria ia para Dong Xuen ao terminar o curso de cinco anos. Ao oeste, o pátio dava na biblioteca, o segundo maior complexo de livros de todas as academias, perdendo apenas para a colossal biblioteca de Dong Xuen e a de Liao Yun.
Na extensa varanda do segundo andar da Casa Rosa, estava o mestre Jya e seus dez conselheiros, cinco de cada lado, vestidos de vermelho alaranjado e dourado, uniforme tradicional do Conselho da Estrela de Fogo. Abaixo, no nível do pátio, os vinte monitores enfileiravam-se de acordo com as fileiras dos alunos. Douglas estava surpreso. Toda aquela movimentação no pátio e ele não estava sabendo de nada. Devia ter passado muitas horas afundado nos livros. Não via Uchiha entre os alunos.
Aquele miserável deve estar matando aula, como sempre.
O garoto se posicionou numa das fileiras.
- meus alunos, exímios e pródigos, eu vos reúno para uma triste noticia. – soou a voz rouca de Jya. – um dos nossos foi acusado de bruxaria.
Os alunos inquietaram-se. O vice grão-mestre subiu ao lado de Jya e começou a explicar a situação.
- na manhã de ontem, o bar Ou Yang foi destruído e houve muitos mortos. Não se tem noticia do mestre Ou Yang e o único suspeito é um aluno de nossa academia. Nossa honra milenar foi jogada aos porcos com essa atitude. E como condiz nosso código, uma conduta má é resultado de uma má educação. O responsável pelo aluno, cujo nome não merece ser pronunciado em publico, será punido.
Um dos sentinelas na varanda fez um sinal para os guardas do palácio de Soray, ao fundo. Segundos depois, surgiram sete homens, seis guardas e um coitado encapuzado e acorrentado, trajando apenas uma calça rasgada nos joelhos. Um poste de madeira erguia-se no centro do pátio. Levaram o homem e o amarraram na coluna de madeira.
Um oitavo homem surgiu por entre a mesma porta de onde vieram os outros, com um capuz e roupas negras, segurando um chicote de couro e ossos com ponta metálica.
- o que verão hoje – entoou a voz de Jya – servirá de exemplo aos professores de nossa academia. Esse homem falhou na missão de discipliná-los. – disse friamente.
O carrasco se aproximou do homem e tirou seu capuz. Douglas estremeceu.
Professor Heilin!
O homem chorava silenciosamente. Estava envergonhado.
- os tempos sombrios se aproximam. Isso é um sinal. Os demônios estão voltando e com eles virão os antigos monstros. – disse um dos ajudantes da biblioteca, que estava ao lado de Douglas.
O encapuzado esperava a ordem de Jya.
- vinte chibatadas. – disse sem cerimônia. O carrasco assentiu com a cabeça e ergueu a mão do chicote. Muitos alunos viraram o rosto, alguns até choravam. Heilin sempre foi um bom homem, um bom profissional. Por que ele? Ele não merecia nada disso, não era justo. E então veio o horrendo som do metal e do couro rasgando as costas do homem. Seu grito de dor apertou o coração de Douglas. Ele também virou o rosto, antes da segunda chibatada.
Ao fim da tarde, o pátio estava vazio e os últimos raios de sol queimavam as costas abertas do professor Heilin, meio jogado ao chão, com as mãos presas ao poste de madeira. Havia alguns guardas espalhados por ai, vigiando o homem. Douglas invadiu o pátio sem autorização e foi vê-lo. O professor tremia, babava de dor e ainda chorava de vergonha. Havia sido humilhado e sua faixa amarela de mentor havia sido arrancada. Foi destituído do cargo.
O garoto não sabia o que dizer. Era uma imagem forte e triste. As feridas estavam começando a feder.
E então Heilin começou a murmurar algo.
- D...Doug...
- estou aqui mestre – disse a beira das lagrimas, ajoelhado perante o corpo do homem, e a pequena poça de sangue que o rodeava.
- O que... O que está acontecendo?
O Mestre dos Livros adentrou o pátio. Esse homem sempre sabia de tudo o que acontecia, mas sempre se mantinha fechado em seu mundo particular. Sua mente é um mistério. Em passos jeitosos, se aproximou dos dois, ali no centro do pátio. Mantinha uma expressão distraída, como se fosse um pássaro de asa quebrada ao invés de um homem com as costas rasgadas e sangrando.
- esses demônios... – disse em tom descontraído – só trazem sofrimento.
- o que você disse? – Douglas fazia força para erguer o rosto e afastar o olhar do homem no chão.
- os demônios estão chegando garoto. Sempre começa assim. Um pequeno atentado aqui e ali, e alguns punidos. Depois os mestres desaparecem... E ai, chegam incontáveis hordas de demônios que transformam o mundo como conhecemos num inferno. A diferença é que, dessa vez, não teremos Bess ou Bei Si para nos salvar. Você passou o dia na biblioteca garoto. E o livro que estava lendo é um tanto interessante. Venha comigo.
- não posso deixá-lo aqui. Não posso. – disse o garoto, referindo-se ao ex-professor.
- você não pode fazer mais nada por ele.
Heilin estava sussurrando algo. Não dava para entender o que dizia, mas quando Douglas se preparava para levantar, o homem segurou seu braço.
- Doug...
Na outra mão do professor, uma fumaça azul revelou uma chave.
- Pegue-a Doug...
A chave do quarto dele.
- Existem... Existem coisas que... Que não ensinamos aos alunos...
O professor desmaiou. Perdeu muito sangue. Agora o sol já não queimava suas costas.
- para onde vamos, Mestre Mattos?
- para a Sala do Silencio. Evite mais perguntas.
A sala do silencio era onde guardavam as relíquias da Dinastia do Sol. Apenas ao mestre dos livros, aos monitores superiores e ao Grão Mestre é permitida a entrada. É como uma biblioteca dentro da biblioteca. Douglas não era ninguém em especial para ser permitido a entrar nessa sala, mas o fato de gostar de livros chamava a atenção do Mestre Mattos.
Depois de caminharem calados até a Sala do Silencio, Douglas disse algo, esquecendo a recomendação do Mestre.
- o que será que ele quis dizer?
O mestre o olhou de soslaio.
- como assim?
- coisas que não se ensinam aos alunos. O que poderia ser? – o garoto não se agüentava de curiosidade. Também estava preocupado. Uchiha não aparecia desde a manhã de sábado. O Mestre Dos Livros se ajoelhou e pôs uma das mãos no ombro do pequeno.
- vocês crescem treinados para matar monstros e demônios. Passamos nossa história, nossos conhecimentos e tudo mais de geração em geração, tudo para que possamos manter o mundo livre dessas criaturas.
Douglas não compreendia onde ele queria chegar. Mestre Mattos prosseguiu:
- mas existem magias para matar homens.
- magias para matar homens? Mas homens se matam o tempo todo.
O mestre deu um risinho. A inocência do aluno em relação a matar e a morrer não iria deixar que alcançasse o ponto de vista do membro do conselho.
- estive lendo sobre a antiga guarda – Douglas puxou assunto, mesmo sabendo que o mestre preferia o silencio. Ainda sim, era o tipo certo de conversa que o homem gostava de ter com alguém. – o que aconteceu com todos?
Os dois chegaram à porta, que se distinguia dentre as várias portas de metal negro naquele corredor, e de dentro das largas mangas de sua toga alaranjada retirou um molho de chaves. Enquanto separava a chave certa, respondeu:
- uma hora, a natureza de um mortal nos indica que já não agüentamos mais todo esse esforço. Nosso corpo cansa. E então, reconhecemos que já basta.
- todos estão aposentados?
- os que sobreviveram, acredito que sim. Os nove guardiões de Bei Si... – suspirou – três morreram em combate, essa é a verdade. Um deles se aposentou, o outro desertou, e ainda há um que vive exilado numa floresta de bambus. E há também o fantoche do nosso querido capitão de proteção.
- e os outros dois, mestre?
- esses dois são um mistério – franziu a palavra mistério, como quem está sendo irônico – ainda hoje, são grandes nomes da Dinastia do Sol. Devem estar no sul, na guerra contra a Dinastia de Lenço Preto.
Os olhos do garoto brilharam. Então eles existem mesmo.
Depois disso, não falou mais. Mestre Mattos abriu a porta e uma aura alaranjada os engoliu, enchendo a escuridão da biblioteca de vida e revelando que, o lugar era ainda maior do que imaginavam.
- pela graça de Bess, o que é isso? – Douglas não acreditou no que viu dentro da sala.
* * *
O navio cortava as densas nevoas da costa com seu casco prateado. Velas negras se içavam pelos três mastros, em sinal de luto. Era um navio mercador, mas pela aparência e tamanho monstruoso, provavelmente foi um galeão de guerra que está sendo reaproveitado. O cais aos poucos foi surgindo através da nevoa, que foi ficando mais fina até ser completamente deixada para trás. E então, novamente, contemplaram a magnífica cidade de neve. Ficava ainda mais esplendida quando vista do mar. O palácio colossal tinha uma torre à altura de seu cume e outra torre, separada, mas vizinha ao edifício, também gigante e linda, com uma arquitetura típica do povo das ilhas de neve. Tinha um jardim de plantas que não existem no oeste, onde ficam os grandes impérios. Ao fundo, um conjunto de modestas feiras e mercados e numa pequena ilha ligada a cidade por uma ponte estavam as habitações. Era uma cidade populosa, pois terreno da ilha visto ao longe, era um aglomerado de telhados azuis e cinzas.
Na beira da proa, a garota suspirou e murmurou para si mesma.
- Xian Duo... Já estava ficando com saudades. – disse logo depois de inspirar o gelado ar da manhã.
Não tardou muito até que o navio aportasse no ancoradouro. Os marujos jogaram as cordas e começaram a descer. Logo, vieram os ajudantes do cais e encaixaram a ponte móvel na lateral do navio, para que sejam descidas as cargas. A garota ruiva foi a primeira a descer, mas sem a necessidade das cordas. Saltou da proa de quase quinze metros de altura e aterrissou de pé, perfeitamente bem. Outras duas garotas a acompanharam, saltando da mesma forma para fora da embarcação. Dois homens, um jovem com cabelos completamente brancos e picotados e outro mais velho e mais baixo, ambos de terno, esperavam pelas garotas, próximos ao gigante armazém do porto.
A ruiva os avistou ao longe, e logo abandonou sua postura valente, correndo para os braços do homem de cabelo branco. A garota tinha um espírito guerreiro, uma alma valente, isso era notório. Mas naquele momento, era apenas uma criança. E não devia ter mais de 15 ou 16 anos. Seus cabelos ruivos e lisos estendiam-se até quase a cintura. Olhos verdes, corpo esbelto e postura ereta, características que chamam a atenção de muitos “pretendentes”, e acima de tudo, estupradores. Mas o que distinguia a pequena ruiva de uma criança, eram a espada, menor que uma montante e maior que uma katana, e uma espécie de garrucha, trabalhada em madeira e metal, ambos oriundos das espécies mais nobres.
- não agüento mais. Não agüento... – disse, abraçando o rapaz.
- velas negras foram içadas. Por quê? – ele perguntou, com delicadeza na voz.
- Wu Lia está morto. Ele... Salvou-nos em Meilin... Foi levado por monstros da neve – disse, já soluçando e com lagrimas prestes a escorrer dos olhos. – significa que Mah é a nova capitã.
As outras duas garotas aproximaram-se calmamente. A mais velha, alta e de cabelos castanhos, olhou para o homem mais baixo e disse:
- perdemos homens importantes em Meilin. Espero que nos reembolse por isso.
- e quanto à carga?
- trouxemos toneladas de materiais raros. Também trouxemos especiarias, algumas que nem mesmo eu havia experimentando antes.
- algo mais? – o homem estava bastante calmo.
- trouxe algumas crias de monstros de neve. Faça bom proveito delas. Mas antes lhe digo que pagará a mais por isso. Mascotes não faziam parte do nosso acordo.
- que seja. Me mostre essas crias, Mah, não tenho o dia todo.
A garota de cabelos castanhos sorriu para o homem.
- é Senhorita Mah para você.
A outra garota se intrometeu.
- vou levar a Nyhal para casa. Se cuida, Mah. – olhou para Kolt, o homem dos cabelos brancos. – vamos. Foi uma longa viagem, preciso descansar.
Era noite e a Senhorita Mah ainda não havia retornado. Nyhal dormia e Mile olhava para o mar, da sacada da casa.
- não consegue dormir? – disse uma voz vinda de dentro do quarto.
- não é isso. Gosto de ficar acordada... Tenho mais paz aqui...
- no que está pensando? – Kolt surgiu na sacada.
- não quero mais essa vida. Nunca quis e nunca tive escolha. Não entendo... Porque temos que fazer o que fazemos... Sinto vergonha. As pessoas nos vêem como bandidas. Todos querem um pedaço da Mah... E a Nyhal... Esses riscos, ela.. Ela...
- ela não é mais uma criança, Mile. Já sabe se virar. – Kolt a abraçou por trás e beijou seu pescoço.
- eu sei. Mas... Isso tudo perdeu o sentido. Quero ir para Dong Xuen. Lá podemos recomeçar, podemos fazer fortuna...
- ficou maluca? O oeste é cheio desses demônios. Dizem que estão voltando. E lá é um inferno de quente. Não veremos mais a neve lá.
- podemos nos acostumar com isso. – ela se virou e ficou de frente para ele.
- imagina o que a Mah vai achar dessa idéia. – ele aproximou seu rosto do rosto dela. Seus lábios estavam prestes a se tocar.
- nós vamos embora, prima?
O beijo foi interrompido. Mile olhou para Kolt e em seguida para a pequena Nyhal. Foi até a garota e afagou seus cabelos. Em seguida, voltou a olhar para o mar. Seus olhos brilharam e ela deu um suspiro.
- sim, Nyhal. Nós vamos embora.
- ISSO É UM ABSURDO. NÃO PAGO 500 MIL PRATAS NISSO NEM QUE AFUNDEM MEU NAVIO.
- olhe para eles, Bartel. São legítimos e estão saudáveis. Quando crescerem, serão os mascotes mais fortes de Xian Duo. Nunca antes alguém havia capturado um monstro de neve. Estou lhe vendendo os cinco únicos. Qualquer outro aceitaria. Se recusar, consigo um comprador em minutos.
Bartel, o homem baixo, olhou para Mah com infelicidade e uma notável raiva.
- você me quebra Mah.
- você compra porque quer. Eu só estou de dando escolhas. Quem as faz é você, somente você.
O homem abriu uma gaveta de sua escrivaninha. Era uma chave, meio verde, de metal.
- divido meus números nessa quantia exata e então separo cada pacote de prata em um cofre. A senha desse é tormenta. – jogou a chave para Mah, que em reflexo rápido, pegou. A garota sorriu para o homem e disse já de costas em direção a saída:
- é um homem esperto, Bartel. Por isso adoro negociar com você.
Do lado de fora, já era noite. A garota perdeu a noção do tempo. Olhou para o céu, inspirou o confortável cheiro das Sementes de Gelo, arvores que, segundo o povo da neve, atendem às preces dos homens. Seguiu seu caminho para o guarda-volumes. Antes dela, havia um homem lá, que entregou a chave para um senhor meio gordo, e sussurrou algo em seu ouvido. O gordo pegou a chave e abriu a porta, que revelou uma sala enorme, cheia dos mais variados objetos. O homem entrou e foi breve, saindo com algumas tralhas de cozinha.
Mah chegou perto do homem gordo, entregou-lhe a chave e sussurrou “tormenta” em seu ouvido. O homem pegou a chave, abriu a porta, e agora, a sala que estava por trás do portal de madeira era completamente diferente, com objetos diferentes. Na verdade, havia apenas sacos e mais sacos, carregados com moedinhas de prata. A moça adorou aquilo.
Eram quatro horas da manhã quando a Senhorita voltou para casa.
- Nyhal, Mile, acordem, temos que... – olhou para Kolt deitado na mesma cama que Mile. – o que ele faz aqui?
- está dormindo, não vê? – respondeu Mile, irritada.
- ele é do Palácio Real e nós somos contrabandistas. Quer ser presa? Vamos, não o acorde, apenas deixei-o ai. Estamos indo para Duo-La.
- a viagem para Duo-La custa mais de 20 mil pratas. Como pretende ir? – Mile estava meio sonolenta.
- consegui o dinheiro. Agora vamos, temos contas por acertar.
Mah foi para seu quarto e fez uma pequena mala às pressas. Depois acordou Nyhal e saíram da casa. Estava nevando lá fora, mas era uma neve fina e suave, nada demais. Mile ficou por ultimo na casa e antes de sair com sua mala já pronta, voltou para o quarto e deu um beijo na testa de Kolt, que ainda dormia.
- o navio já está pronto. – disse, já do lado de fora.
- por que decidiu sair assim, tão repentinamente?
- temos que resolver isso o quanto antes. Essa é nossa oportunidade.
- e a Nyhal? Devemos deixá-la com Kolt.
Mah virou-se para Mile. Ambas estavam irritadas.
- quantas vezes tenho que repetir que ela não é uma criança? Em Meilin, Nyhal matou mais monstros do que os nossos homens. Ela vai ficar bem.
Foram a pé para o porto e chegaram dez minutos depois. Boa parte dos homens nem havia saído do navio. Mah acordou a tripulação e manobraram com o galeão para fora do ancoradouro.
Aos poucos, a cidade foi ficando para trás. Agora só se podia ver a ponta do Palácio Azul. Iriam navegar sem se afastar muito da costa. Duo-La Neve era no mesmo continente, que nada mais era alem de um arquipélago. As ilhas eram gigantes, colossais e muito próximas. Por isso, mais parecia um só pedaço de terra do que vários.
No mar, perde-se a noção do tempo. No leste, o Sol emergiu das infinitas águas do Mar Gelado. A tripulação foi saudada por sua luz, que revelou as montanhas de gelo a Oeste. Avistaram a costa de Duo-La e ancoraram ali perto. Desceram três pequenos botes a remo e remaram até a praia de gelo. Andaram por horas até encontrar uma escadaria que levava a um castelo que lembra muito a arquitetura do Oeste, mais precisamente nas províncias do Sul. Era um castelo todo de vidro, algo que não se via comumente. Uma construção perfeita e enorme. O castelo aparentava ser ainda maior que o Palácio Azul. Mah sacou sua garrucha metálica.
- esse será o acerto de contas. – disse desafiadoramente.
* * *
Do outro lado da porta, o chão acabava em um abismo, alguns passos à frente. Desse abismo, o Mestre dos Livros e Douglas tinham vista para uma Dong Xuen muito mais bela e gloriosa do que a atual metrópole. Viram palácios e castelos que hoje não existem, e no céu alaranjado, dragões voavam mansos. O Sol jazia nas montanhas, no mesmo tom em que estava o céu.
- estamos vendo o futuro? – perguntou Douglas, inocente. – essa Dong é muito mais avançada.
O mestre sorriu.
- estamos olhando para o passado. Antes da chegada dos primeiros demônios. Mas agora, basta disso.
Bateu com as palmas da mão, uma na outra, e toda aquela visão virou uma fumaça azul que entrou pelas mangas do mestre.
Naquela sala, o mestre sacou uma pedra perfeitamente circular e plana.
- isto é uma pedra quebrada da sabedoria. Não é das melhores, mas vai servir.
- por que está fazendo isso? Você mesmo disse que não sou ninguém.
- o garoto que foi preso em Dong Xuen. Você o conhecia? – perguntou o mestre, após uma breve pausa.
- não faço idéia de quem seja.
- ao menos ouviu o nome?
Douglas não respondeu e o Mestre Dos Livros prosseguiu:
- os sussurros apontam para Uchiha Lucas.
Douglas tremeu. Uchiha. Não podia ser. Uchiha associado com magia negra? Algo estava errado.
O mestre continuou:
- não vá para Dong Xuen. Sei que é isso o que está pensando. Em breve, esta academia será atacada. Mas não pelas tropas da Dinastia de Lenço Preto. Estou falando de monstros e demônios. Não teremos tempo de avisar a todos os alunos, e você deu sorte de conhecer o único que deve saber algo a respeito dos ataques. Sei de muitas coisas garoto, não me olhe assim. Na hora certa, você deverá partir para Loras. Ouviu?
- sim, mestre... – Douglas estava perdido. Não entendia nada, aquilo não fazia sentido.
- não conte isso a ninguém.
Douglas passou um tempo em algum lugar do pátio, pensando na vida. Depois se lembrou da chave de Heilin. Então, no fim da tarde, foi até o Palácio de Soray, que é restrito aos alunos. No portão, foi barrado por dois guardas. Deu meia volta e foi para a lateral do palácio. A primeira janela estava a três metros. Não era um desafio para o garoto. Saltou e andou sobre a parede e então, estava no fim do corredor vazio. A maior parte dos professores ainda está lecionando á essa hora. Douglas estava sem aula, pois a época de formatura paralisa todos os cursos intermediários. Subiu mais um andar e chegou ao quarto de Heilin. A chave entrou na fechadura, superando o receio do garoto. Abriu a porta e estava tudo perfeitamente normal. Vasculhou o quarto todo e enfim encontrou um baú de madeira embaixo da cama. A chave verde também abria esse baú. Parecia, na verdade, uma espécie de chave mestra. E então deparou-se com o conteúdo da coisa. Era um pequeno cajado, de madeira nobre e aço Loraniano Dourado. Um pequeno pergaminho enrolava-se sobre o bastão. Douglas retirou o pergaminho com cuidado e leu um pequeno trecho:
“Potras Ventra - atormenta a mente por alguns momentos, revelando suas sombras e pesadelos. Não há homem que seja imune a essa magia. Precisa apenas apontar para o lugar certo. Nunca esteja perto de algum material metálico ou algum espelho.” Potras Ventra significa tormenta da mente no antigo Dialeto Loraniano. Terminou de ler e pegou o cajado. E então sentiu uma vibração em seus ossos e quando abriu suas mãos, o bastão não se soltou. Parecia estar colado. Pôs a outra mão para uma nova investida contra o objeto que desafiava a gravidade e esta também colou. Encostou a coisa no chão e pousou o pé sobre ela, e ao fazer força, finalmente se livrou do cajado. Olhou para a palma das mãos e ao virar para ver as costas das mesmas, notou que suas unhas estavam ficando azuis. Assustou-se, e correu para o banheiro. Derrabou um pequeno balde de água para lavá-las, mas não parecia ser tinta. Ouviu passos no corredor. Alguém deve ter ouvido a barulheira que causou. Rasgou a roupa de cama que estava dobrada ali perto, cobriu o cajado e pegou o pergaminho. Ia saltar pela janela com os objetos, mas um monitor rompeu quarto adentro.
- o que está fazendo? – perguntou desconfiado.
Douglas ficou sem reação. Já estava com um pé do lado de fora. Então, voltou para dentro do quarto e escondeu as mãos.
- o que você tem aí, moleque? – o monitor ia descobrir o cajado. Provavelmente iria tocar nele e sua mão também ficaria grudada. O garoto seria açoitado, e assim que descobrirem que a arma era de Heilin, este seria açoitado também. Pensou numa saída. Não poderia usar técnicas de fuga contra um monitor. Eles são treinados contra todas elas.
Douglas ergueu o dedo apontando para a cabeça do rapaz e gritou no mesmo momento:
- Potras Ventra! – e de seu dedo saiu um raio de luz negro com reflexos quase rosados que correram contra a cabeça do monitor, atirando-o ao chão e adentrando sua mente. O garoto aproximou-se do homem caído e viu que parecia dormir, mas de olhos abertos.
- coisas que não se ensinam aos alunos – disse para si mesmo.
Pulou da janela. Pouco depois, desceu até uma vila no Planalto do Sol Nascente, único lugar fora da academia permitido aos alunos. Douglas tinha uma incrível facilidade para escalar prédios e casas. Vivia sobre o telhado delas, quase sempre acompanhado de Uchiha. Agora estava sozinho, sentado na beira de um telhado, não muito alto, admirando o pequeno lago ao fundo. Havia uma casinha no centro de uma ilha dentro desse lago. Era onde morava Jia Lao Shi, um renegado do antigo conselho da Academia Estrela de Fogo.
Estava pensando a respeito de Heilin. Foi açoitado por que um aluno havia sido acusado de usar magia negra. Talvez Uchiha seja inocente. Mas Douglas realmente usou magia negra. Aquilo era bruxaria, fácil de identificar. Quando descobrirem, o garoto seria condenado e expulso.
- pois é Heilin. E agora? – disse baixinho.
Selenium- Mensagens : 2
Pontos : 4819
Data de inscrição : 23/09/2011
Re: A Dinastia Do Sol - Continuação
Olá Selenium,não era necessário a criação de outro tópico para a postagem do próximo capitulo de sua história.Bastava apenas continuar ali ^^
Nanda- Admin
- Mensagens : 1014
Pontos : 9264
Data de inscrição : 13/07/2011
Idade : 27
Localização : S.H.I.E.L.D
Re: A Dinastia Do Sol - Continuação
Se sua fic está no lugar errado (Andamento, Paradas, Concluidas, ou Short Fic), peço desculpas, e, por favor, peço que me mande uma MP pedindo para mudar de lugar. Obrigada^^
Eloo- Admin
- Mensagens : 2414
Pontos : 9880
Data de inscrição : 11/07/2011
Idade : 27
Localização : Nárnia :B
Fanfics :: Categorias :: Outros :: Paradas
Página 1 de 1
Permissões neste sub-fórum
Não podes responder a tópicos