A Dinastia Do Sol
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A Dinastia Do Sol
Bom pessoal, antes me apresentando.
Meu nome é Gabriel Ferreira. Participo de vários foruns na internet (quase todos são de jogos) e atualmente estou trabalhando numa fanfic do jogo magic campus. É um jogo de browser (navegador) que está crescendo muito rapidamente. No forum do jogo, a fanfic está no capitulo 5.
Decidi postar aqui pra ver se agrada ao pessoal. Não fiz nada muito preso ao jogo, e os nomes foram retirados dos nicks de amigos que fiz no forum e in game. Creio que dá para entender a história mesmo que nunca ouviu falar no jogo.
bom, vou postar o prologo e mais 2 capitulos de uma vez, já que são pequenos.
Espero que gostem.
Abraços.
Prólogo.
- acho que devemos voltar. Se anoitecer antes de chegarmos à trilha será difícil alcançar Dong Xuen ainda hoje.
- está com medo Selenium?
- não tenho medo de selvagens. Já fomos a lugares piores e isso pouco se compara aos Assassinos do Mar Vago.
- Kyshme, concordo com o Selenium, estamos andando a duas horas. Pelo que eu sei, não existe nenhum Mensageiro nesta região. Não vamos conseguir atravessar a pé e daqui a pouco vai anoitecer. Sabe como esse lugar congela durante a noite.
- vamos andar mais um pouco. Se não encontrarmos os corpos, nós retornaremos. Satisfeitos? Se não tivessem parado na pradaria, ainda estaríamos com nossos cavalos.
- se não tivéssemos parado em Ta-Ke, estaríamos mortos de fome – respondeu Nick, com um pequeno toque de agonia no seu tom de voz – e também, quem esperaria que os lobos estivessem guardando a estrada?
- eles guardam as estradas Nick. Essa é a tarefa deles.
Uma breve pausa. Kyshme escutou algo nas redondezas do vasto mato alto, que cobria os rapazes até os joelhos. Era um som que lembrava galhos quebrando, sendo esmagados com cuidado, um pouco longe de onde o grupo estava.
- alguém ouviu? – perguntou aflito.
- ouviu o que?
E então o mesmo barulho, dessa vez mais perto.
- isso. Tem alguma coisa aqui – Kyshme sussurrou – deve ser um Caracol.
- guardas? Tão longe do lago? Acho pouco provável – respondeu Nick, enquanto abaixava-se para amarrar um de suas botas, cobertas de lama.
Agora o mato mexia-se de forma incomum na direção norte de onde estavam abaixados. Kyshme, e Selenium, que iam à frente, logo desembainharam suas adagas. Usar espadas dentro de um bosque assim é pouco eficiente, já que esse tipo de local é fechado demais para manusear armas grandes.
E então um sussurro:
- Kyshme? É você?
Os garotos ficaram imóveis. E outra vez:
- Kyshme? Selenium?
Era uma voz rouca, que dava a impressão de que foi toda gasta em pouco tempo. Selenium levantou vagarosamente para observar o que estaria do outro lado da grama alta.
- Holy? – perguntou em direção ao mato. – HolyHands?
Um vulto negro surgiu bruscamente, como quem se levanta de seu assento por reflexo de uma alfinetada.
- Holy! Assustou-nos rapaz! Por um estante pensei que os Selvagens aprenderam a falar nossa língua – disse Kyshme, surpreso e com notável ironia.
- pra onde vocês estão indo? – perguntou Holy, fazendo força para falar. Sua voz estava extremamente gasta e cansada.
- para Dong Xuen. – respondeu Selenium, interrompendo o dialogo - Viemos de Pompéia – prosseguiu mais aliviado - mas o Mensageiro do Oasis mandou-nos erradamente para o deserto do Mar Vago. Estávamos a pé desde então. Nossos cavalos comprados na Pradaria foram roubados antes de cruzarmos a fronteira com a Ilha do Sol. E o que você faz aqui?
- Selvagens. Estava caçando alguns arruaceiros. Eles andaram causando problemas na Vila.
- estávamos procurando alguns desses também! Parece que eles estão revoltados. Vimos alguns na Ta-Ke, estavam indo para o Sul – Nick se intrometeu, cumprimentando o velho amigo.
- para o Sul? O que os selvagens fazem indo para o deserto?
- não sei Holy. Não sei nem como chegaram nessas redondezas. Não é todo dia que vemos selvagens em lugares tão pacatos como o Lago do Sol. E afinal, cadê a sua equipe?
Holy fez uma pequena pausa para pensar novamente. Estava escolhendo com cuidado suas próximas palavras.
- estão mortos Kysh. Acho que todos eles.
- como assim meu amigo?
- Acampamos na fronteira da Vila. Algo nos surpreendeu ao amanhecer e matou nossos cavalos. Pensamos que fossem selvagens, mas já não ponho mais fé nisso. Eu estava a pé com outros quatro soldados Pangeanos. Quando parei para atender os chamados da natureza, simplesmente não os encontrei em minhas proximidades. Avancei mais um pouco para o norte, e foi então que...
Holy parou de falar. Olhou para baixo e sentou-se numa tora de arvore derrubada recentemente, provavelmente por ação das chuvas fortes. Deu um longo suspiro, e agora, com a escuridão aumentando, o frio alcançava os pulmões dos rapazes e era possível ver o hálito branco saindo de suas bocas.
- o que aconteceu Holy? – Selenium estava curioso e um pouco receoso.
O garoto hesitou um pouco antes de continuar, novamente escolhendo suas palavras com cuidado. E por fim, disse:
- eu os encontrei.
- quem? Os seus soldados?
- não Kyshme. Eu encontrei os selvagens. Estavam todos mortos. Todos eles. Depois de passar um tempo tentando entender o que havia se passado, decidi entrar na pequena aldeia deles. Havia muito sangue, restos de seus corpos pra todos os lados. Foi uma carnificina. Tinha uma barraca grande, que me chamou a atenção. Entrei por pura curiosidade e encontrei Lacos, um de meus soldados. Estava preso, acorrentado. Morto. Algo arrancou-lhe o coração.
- Santo Bei Si! Que coisa bizarra! – disse Nick, com a voz tremula. O rapaz estava um pouco mais apreensivo, com a suspeita de que não estavam atrás de selvagens, mas de uma ameaça maior.
Depois de um pequeno e incomodo silencio, Kyshme reergueu a cabeça. Entregou sua adaga a Holy, que estava com a armadura danificada em certas partes, e também desarmado.
- melhor esclarecermos isso depois. È bom retornarmos antes que fique mais escuro.
- você está liderando o grupo Kyshme?
- sim Holy, esses fanfarrões não estão aptos para ficar no meu posto – respondeu rindo.
- sei.. – respondeu com desinteresse – mas agora já é tarde. Não vão alcançar as trilhas para a hospedaria em Ta-Ke. Acho mais fácil retornamos a Vila.
- Vila do Sol? Estamos a quanto tempo de lá?
- uma meia hora. Vocês podem descansar na residência dos Li-Yang. Afinal, o Mestre Li-Yang que estava responsável pelos Pangeanos. Acho que não se importará.
Foi um percurso silencioso. Os rapazes pouco conversaram até chegar à Vila. Era um lugar pequeno, um vilarejo minúsculo, resumido em apenas duas ruas. Na primeira, haviam algumas poucas moradas com mais de dois andares e pequenas lojas de mantimentos. A segunda rua resumia-se em um restaurante e um notável casarão feito de pedra, com seu exterior vaidosamente decorado de pedras ornamentais, vindas, com certeza, de muito longe dali.
- é a mansão dos Li-Yang – disse Holy, guiando os outros por entre a pequena multidão que se acumulara nas entradas da Vila, na esperança de receber boas noticias. Quando as pessoas notaram que apenas um enviado de Li-Yang voltara dos bosques, tiveram seus rostos tomados pela habitual expressão pálida e triste. A Vila estava atormentada por seres malditos do bosque, que todos acreditavam que fossem os selvagens. E pelo visto, não era naquele dia que o tormento acabaria.
Era fácil detectar um Pangeano. As vestimentas, em geral, destacam o vermelho vinho com detalhes dourados nas partes inferiores, a altura dos joelhos. Um colar dourado envolvendo o pescoço, braceletes de tecido branco com detalhes de azul metálico e prateado, cobrindo os braços do cotovelo até o punho, e por fim, uma tiara envolvendo a cabeça, branca com ressaltos roxos e bordas amarelas, são as principais características de um autentico graduado da Academia Pangea. Embora Pangeano não seja a palavra adequada, era assim que estes eram chamados fora da academia. Holy Hands era o único Pangeano entre os quatro ali presentes.
Ao chegarem aos portões do casarão, foram recebidos por guardas bem fardados. Calmos e cansados, foram encaminhados diretamente para o aposento do Mestre Li-Yang.
Silenciosamente, entraram na sala e permaneceram calados, até que o mestre finalmente quebrou o silencio.
- ora, estes não são meus enviados – disse em tom gentil – então quem são?
- não se preocupe senhor. São da Dinastia do Sol.
- da dinastia do sol – murmurou baixinho, como se fosse apenas para ele ouvir – então são da família. Mas onde estão meus soldados?
- eu receio que estejam mortos, senhor. Todos eles. E os selvagens também. Eles não são mais uma preocupação – disse Holy, com a voz tremula. – e estes aqui eu encontrei no caminho. Vieram de Pompéia e estão cansados. Ofereci que passassem a noite em nossas estalagens.
- certo, certo. Afinal, uma noticia boa compensa uma ruim. Nos apresentaremos durante o banquete. Sey-Li levará vocês até seus quartos. E recomendo que tomem um banho. Estão todos empesteados.
Mais ou menos uma hora depois, aos poucos, um a um entrava na grande sala do jantar, escolhendo um assento na grande mesa, feita em quase toda sua parte, de mogno. Em meia hora, todos já estavam presentes, tagarelando. Quando o Mestre Li-Yang se apresentou, o silencio tomou a sala e ninguém falou nada até ele fazer a primeira pronuncia.
- Meus caros amigos e mestres – fez uma pausa e em seguida soltou um suspiro dramático. Enfim prosseguiu – hoje temos um grande motivo para comemorar. Os selvagens estão mortos.
Mal terminou a sua pronuncia e logo todos voltaram a tagarelar empolgados com a noticia.
Holy, Nick, Kyshme e Selenium sentaram-se próximos perante a mesa. O mestre fez mais algumas pronuncias, e pouco depois, os criados entraram com toda a comida na sala e a puseram sobre a mesa. Os convidados e hospedes comiam empolgados, e os sons de colheres raspando e batendo em seus pratos formava uma melodia acompanhada do barulho que as bocas cheias faziam ao mastigar.
Pouco depois, a sala foi ficando vazia. Alguns convidados se retiraram, antes que ficasse muito tarde para pegar a estrada. As estradas de terra para Dong Xuen são terríveis durante a noite.
- isso é uma tradição dos Li-Yang – sussurrou Holy Hands no ouvido de Selenium – eles fazem um banquete especial com os regentes da Dinastia do Sol a cada lua minguante. Daqui a pouco vamos ter uma boa história.
Não demorou muito, e o Mestre Li-Yang, sentado em sua poltrona alta, deu vários toques com a colher em seu cálice de vidro, pedindo a atenção de todos.
A mais recente Li-Yang aproximou-se dos pés da poltrona e puxou as vestes de seu pai.
- papai, pode continuar a história da Princesa Sofia? Por favor..
- a história da princesa Sofia – disse lentamente – pois bem, onde paramos?
- ela estava atravessando o vale de pedra papai... A bruxa malvada corria atrás dela..
Kyshme franziu o cenho, como um gesto de interesse.
- acho que já ouvi essa história – sussurrou para Holy – a princesa corre para o topo de um vulcão onde um deus a ajuda a matar a bruxa... Se me lembro bem, ela tem um filho nesse vulcão e...
- ele funda Pompéia – interrompeu Holy. – é realmente uma história famosa.
Depois do jantar, os garotos foram guiados pela Senhora Li-Yang até seus quartos. Selenium recebeu o ultimo quarto, ao fim do corredor. A moça o levou até a porta, e entrou junto com ele para despedir-se com boas noites.
- a comida estava ótima – disse Selenium, gentilmente – faz muito tempo que não comia assim.
- agradeço sua educação – retrucou a mulher, com um sorriso gentil no rosto. – a maioria de nossos cozinheiros cursou com o Mestre Ou Yang, de Dong Xuen.
- isso explica muita coisa, minha senhora. Bom, enfim o dia terminou... Mal vejo à hora de voltar para casa.
- vejo que foram tempos difíceis para vocês – disse com certo ar de interesse – Huang Xiao Ya nos informou de que os recém formados não estão recebendo a mínima trégua...
- é verdade senhora. Mas não estávamos a serviço do Capitão de Proteção. Caçávamos selvagens a pedido dos regentes de Pompéia. Mas de certa forma, os ataques da legião de lenço preto têm se tornado mais freqüente...
- hmm – murmurou.. Bom, boa noite guerreiro. Se pretendem partir cedo amanhã, recomendo que descanse bem.
- boa noite madame – disse gentilmente. A moça fechou a porta e foi-se embora. Selenium despiu-se e deitou – mal vejo a hora... – repetiu em um sussurro para si mesmo.
Ao amanhecer, partiram para Dong Xuen. Uma espaçosa carroça dada como presente aos soldados, puxada por quatro corcéis brancos foi de grande importância nessas estradas acidentadas.
Pouco antes da partida, Kyshme tentou convencer Holy Hands a ir junto para Dong Xuen.
- tem certeza de que vai ficar? – disse.
- absoluta, meu amigo. Meus serviços contratados por Li-Yang ainda não terminaram. Preciso cumprir com a meta dele.
- entendo. Nos veremos na formatura?
- puxa, estamos no mês de formatura... Havia me esquecido. Soube que este ano teremos poucos formados... Os mestres apertaram os cursos. Você foi convidado pra assistir a cerimônia?
- com toda a honra – respondeu Kyshme, ao dar um risinho forçado – Selenium também foi. Talvez nos peçam para adotar aprendizes.
- não o imagino como professor, caro amigo. Muito menos o Selenium – retrucou.
- é normal. Mas não vou querer ser professor. Ao menos que renda o suficiente, ou que o novato seja talentoso. Lutadores ainda são fáceis de ensinar. Pior os Médicos, é o que dizem.
- Hei! Kyshme! Você quer ir a pé até Dong? Vamos, não agüento mais ficar aqui – gritou Nick, da carroça.
- bom, vou lá. Até mais, meu amigo - Os rapazes abraçaram-se em despedida e Kyshme entrou ansioso na carroça. Não demorou muito até avistarem os grandes portões da cidade, ao longe, do outro lado do campo do Lago Do Sol.
A carroça chegou triunfante perante os portões de Dong Xuen. São portões grandes, dourados, com um Leão Serpente esculpido no topo lateral de cada porta. O portão fica apoiado sobre duas grandes hastes verdes, enfeitadas com detalhes dourados.
A Carroça parou em frente ao palacete dos mestres e regentes da cidade. A cidade é grande, embora não possua muitas residências. Os prédios são quase todos comerciais. Trata-se de farmácias, mercearias, feiras de mascotes, ferrarias, lojas de jóias e um único banco. Fora isso, havia algumas tabernas, barracas militares, a grande biblioteca, uma arena, as docas e o palácio dos Regentes.
Na entrada do palacete, uma figura um tanto interessante postava-se ereta, como quem guarda os portões. Estava escondido sobre uma complexa armadura. Vestia uma capa vermelha, com uma enorme ilustração de fênix. Na frente, estampado no peitoral da armadura prateada, estava escrito “puma”, sobre efeitos de labaredas detalhadamente pintadas sobre o ferro. O resto da armadura era negro como as botas de pano e metal, e a calça por traz das vestes abaixo da cintura. As vestes eram uma combinação de branco com preto. Ele usava duas ombreiras com ressaltes dourados, embora quase imperceptíveis e braceletes de ferro. A parte superior dos braços estava nua, exibindo músculos bem trabalhados. Na cintura, uma série de cintos metálicos e cordas pretas amarravam uma espada embainhada que se estendia quase até o chão e uma adaga, não muito longa, porém não muito curta, exibindo sua lamina afiadíssima e seu punhal bem enfeitado. Puma não largava o punhal da espada. Quando os rapazes saíram da carroça, encarou um a um perante os portões e pouco falou.
- estão atrasados – disse.
- nós sabemos – retrucou Kyshme. - Precisamos falar com o capitão de proteção.
- Feng não estará à disposição de vocês hoje – disse rigidamente.
- ainda não falamos com ele para saber – retrucou novamente, enquanto encarava Puma.
O cavalheiro abriu a porta, evitando cuspir mais palavras nos soldados. Eles entraram e dirigiram-se para o enorme salão, não muito distante da entrada. Aguardaram um pouco e foram acolhidos pelo Diretor do Mercado. Fizeram uma reverencia pala cumprimentá-lo.
- vocês estão dois dias atrasados – disse o diretor em um tom rígido. Um silêncio se espalhou pela sala, como se todos estivessem selecionando as palavras mais adequadas.
- puma não está tendo um bom dia, é o que parece – Nick foi o primeiro a romper o silencio, mudando de assunto.
- ah, sim. Feng, o retirou de uma missão importante. – o Diretor mudou completamente sua expressão. Já não estava mais sério como havia se apresentado - Iriam interceptar alguns generais de lenço preto que cruzavam pelo Planalto do Sol – disse. O diretor era um tanto gordo, estava sempre vestido de azul, com longas vestimentas de pluma. Possuía uma barba branca, não muito comprida, mas tampava-lhe quase todo o rosto.
- o que ele fez para ser removido da missão? Já é um costume ouvir elogios de sua atuação como comandante no campo.
- ele está acima desse patamar Selenium. Pensei que soubesse, recentemente foi promovido para General. Mas isso não vem ao caso. Vocês entregaram a carta para vosso rei de Pompéia?
- sim senhor – Selenium estava desanimado. Talvez estivesse só um pouco cansado, mas era notável um toque de tristeza em sua voz.
Não conversaram muito e logo o Capitão Feng apareceu na Sala.
- ora, aí estão vocês – disse – Kyshme, quero conversar com você – prosseguiu enquanto o agarrava pelo braço, puxando-o para fora da sala. Deixaram o palacete e foram para uma taberna vazia, abandonando Selenium e Nick a deriva do Diretor. Provavelmente eles conversaram sobre negócios. O capitão encarregou-se de fechar as portas e janelas para que não fossem ouvidos, enquanto Kyshme o encarava tenso.
Feng dirigiu-se para o balcão da taberna, onde tinha atrás, uma série de prateleiras e pequenos armários. Pegou duas taças de vidro e as colocou sobre o bar, enchendo-as com o vinho.
- aceita? – perguntou amigavelmente – veio de Yun-Lu – prosseguiu – não faz idéia de como é raro. As safras de lá crescem uma vez a cada dez anos. Guardo para ocasiões especiais.
- o que torna isso uma ocasião especial?
- ora Kyshme... Ora, ora.. Afinal, não existem segredos entre nós, não é mesmo?
Kyshme permaneceu calado enquanto o capitão levava as taças para uma mesa perto do bar. Puxou sua cadeira e antes de se sentar, puxou outra, como um convite silencioso. Kyshme não hesitou. Sentou-se e tomou um pequeno gole. Depois de um breve silencio, Feng voltou a falar.
- não vai me dar as noticias?
- que noticias? Do que você está falando senhor?
- pare com esse joginho – O capitão Feng estava tentando se controlar, mas parecia esconder uma ânsia profunda, como se algo estivesse por acontecer – sabe, ontem de madrugada, alguns boatos chegaram à cidade... Andam dizendo que você e seus amiginhos mataram todos os selvagens dentro dos domínios da Dinastia. Mas hoje cedo eu fui caçar alguns desertores e sabe o que eu encontrei não muito longe dos nossos portões?
Kyshme hesitou permanecer calado.
- um caracol. Um soldado caracol Kyshme. E você sabe o que é um soldado Caracol, não sabe?
- um selvagem – murmurou.
- não foram vocês que mataram os selvagens. Você nem deve saber quais foram mortos, se é que foram mortos mesmo.
- não estou entendendo aonde você quer chegar, senhor.
- onde quero chegar? Ultimamente, as tropas de Lenço Preto têm atacado em ritmo mais acelerado que o normal. Foi um belo dia no qual eu e o Puma lideramos uma tropa de reforço para a Estrela de Fogo. Boa parte dos ataques se concentrou lá.
- não é a toa senhor. Desde que eu me formei vejo uma enorme demanda por novos Lutadores.
- não importa. O Puma viu alguma coisa no caminho. O flanco que ele comandava estava separado do meu. Ele levou uma tropa inteira pro meio do mato e aí todos morreram – disse com um tom irônico e prosseguiu dando uma risada forçada, para ressaltar a ironia – todos morreram, cara. E o desgraçado voltou sem nem saber o que os havia atacado. Pobre Ru... Ele era um dos meus melhores comandantes... E voltou sem coração. Isso mesmo, um buraco enorme no peito. E isso bate com um certo boato que ouviram na Vila. Lacos era um Pangeano famoso. Ah, se era. Ele também teve o coração arrancado nas proximidades da Vila do Sol.
Quando o Capitão parou de falar, tomado por um silencio espontâneo, ainda estava encarando Kyshme, que engoliu seco.
- você sabe qual criatura gosta de arrancar o coração de suas vitimas mais renomadas? – prosseguiu. Kyshme sabia a resposta, mas não queria assumir.
- senhor, eu...
- NÃO ME CHAME DE SENHOR – gritou interrompendo – nossa relação é muito mais intima para que você me trate assim. Me chame de Feng logo, antes que eu lhe de um murro. Responda a minha pergunta!
- eu não..
- Kyshme, responde a droga da pergunta – continuou gritando, socando a mesa. Sua taça quicou sobre a madeira e caiu deitada, rolando até a borda e espatifando-se no chão.
- demônios. Demônios fazem isso - Kyshme respondeu.
Feng soltou um suspiro triunfante e fez uma pausa percebendo que havia chegado onde queria.
- você viu algum?
- não. Não vi. Pelo amor de Bei Si, por que diabos estamos falando disso?
- Li-Yang contratou Pangeanos para matar uma ameaça que pensava vir dos selvagens. Eu sei disso. Se demônios passaram mesmo por lá, nossa Dinastia corre um grande perigo. E eu sou o Capitão de Proteção droga! – Feng estava gritando praticamente para si mesmo. Não olhava para Kyshme enquanto cuspia suas palavras – Eu sou o Capitão de Proteção – repetiu mais calmo olhando para o chão – isso é tudo. Eu queria arrancar isso de você.
- o que vai fazer Feng? Tenho certeza que o Puma já sabe disso. Foi por isso que tirou ele da ultima missão, não foi?
Feng hesitou em responder.
- foi. Não importa agora. Você já pode ir. E não se preocupe. Não irei caçar demônios sem te chamar antes. Você e seus amiginhos fanfarrões.
* * *
- Douglas, entrega logo essa maldita prova! O sinal já bateu! – disse o professor.
- calma! Não terminei!
- terminou sim! Anda, me de isso – o professor já estava puxando a prova da carteira do menino.
- falta o meu nome! – levantou em protesto.
- deixa que eu ponho! Agora sente-se novamente e cale-se!
A sala estava vazia. Era sábado e não tem aula aos sábados. Estavam presentes ali apenas o professor e o menino.
- não entendi ainda o motivo disso. Eu não merecia essa detenção! - protestava o rapaz.
- isso foi por você ter matado as galinhas do Wang Wu.
- quantas vezes vou ter que dizer que ele me pediu?
- não vou discutir isso com você de novo. Se for reclamar, reclame com o Monitor.
O professor passou o olho na prova, voltou para sua mesa. Pousou a prova e puxou uma pena para analisá-la. Logo fechou a cara, fazendo uma expressão séria franzindo o cenho, como se não se conformasse com algo.
- não entendo como você desperdiça seu talento em bobagens – disse sem desviar o olhar.
- como disse?
- você gabaritou Douglas. Acertou tudo.
O garoto parecia que ia saltar da carteira para comemorar, mas preferiu manter a postura de quem não se importava.
- é mesmo? – disse – è porque Teoria de Magias Ativas não é muito meu forte, sabe... – continuou em tom sarcástico – posso ir agora?
- sim, retire-se, por favor.
Em passos lentos, Douglas se retirou da sala fazendo questão de exibir um ar de superior perante o professor. Ao chegar à porta, o professor interrompeu seu desfile.
- Douglas!
O menino virou-se.
- sim?
- na próxima vez que caçar galinhas no pantanal, vou deixar o treinador te açoitar.
- não se preocupe senhor.
O professor franziu novamente o cenho.
- ele não vai conseguir me pegar – continuou o garoto, sussurrando sozinho e baixinho ao virar-se para frente.
Continuou seguindo pelo corredor, em passos ansiosos. Era um corredor entre a parede de vidro com longas persianas que filtravam a luz do sol das dez da manhã e as salas de aula. O chão era todo coberto por azulejos artesanais vindos de Xian Duo, a capital do comercio, depois claro, de Dong Xuen. As paredes eram compostas por uma linda espécie de madeira, sendo as internas extraídas de Yu-Feng e as externas do Caminho do Bambo. Era realmente um lugar de visual impecável para uma escola primária. A Academia Estrela de Fogo, um complexo de vários prédios, é a mais importante academia entre as outras. Todos os anos, a demanda por Lutadores Artistas, assim chamados por originarem de trupes itinerantes, cresce em ritmo superior a de outras profissões. Às vezes, essa demanda é ultrapassada pela academia dos Atiradores Mágicos, também conhecidos como Elites.
Pelo fato de possuir mais alunos, a academia recebe mais investimentos oriundos do tesouro do Palácio de Dong Xuen.
Douglas todas às vezes passava admirado por aquele corredor. Desta vez, porem, passou quase correndo. Sentia a brisa da liberdade, da recente luz da alvorada. Estava preso em detenção no colégio e mal podia esperar para sentir o ar puro da manhã do lado de fora da Academia. Sua ânsia começou a aumentar a cada passo em direção a porta, mas o corredor parecia não terminar. Antes, Douglas teria notado a enorme quantidade de salas, o grande labirinto que o complexo interno formava, com seu grande número de corredores transversais, a grande quantidade de salas de madeira... E aquela madeira, a linda madeira exportada da mítica floresta Yu-Feng... O rapaz adorava ouvir histórias sobre as florestas... Mas hoje não. Hoje é sábado, e garotos descansam aos sábados. Então, finalmente se viu cruzando a porta da entrada, a grande porta de madeira dourada, única e exclusiva das preciosas Terras do Guardião. Seus passos corridos, no entanto, tropeçaram com os do Mestre Wu. O idoso guerreiro aposentado, o fogo da era dos despreocupados, a própria estrela de fogo. Mas era apenas um idoso, no final das contas. O mestre já não tinha mais tanto poder. O grande Wu, estava pequeno e quase corcunda, mas andava com suas famosas vestes vermelho vivo, que ao longe dava a impressão de que este estava em chamas. Com sua bengala, feita da mesma madeira que envolvia as paredes do corredor, apoiava-se com dificuldade para manter-se de pé.
Douglas quase jogou o mestre no chão. O velho, sempre sorridente, exibindo seus poucos dentes, conseguiu se esquivar do garoto, demonstrando reflexos ainda apurados. Ao primeiro ver, mestre Wu era fraco e lento, mas não era necessário conhecê-lo de longa data para entender que ainda existe um fogo ardendo dentro de seu espírito perseverante, e que ainda existe força para, uma ultima vez, empunhar sua famosa espada Wu Zi.
- mil perdões mestre, eu não queria...
- não se desculpe jovem – disse sorrindo o mestre banguela – afinal, sábado não é dia de ficar na escola...
- eu não... Eu estava em...
- detenção – o mestre interrompeu novamente. Era um senhor ansioso por se expressar, e era raro terminar uma frase perto dele – na minha época era muito pior... Esse troço de detenção não existia jovem.. Era açoitamento – deu um risinho – o famoso e temido açoitamento. Perdi a conta de quantas costas já sangraram naquele tronco ali. E como se resolvesse o problema... Uma vez, há alguns anos atrás, um jovem com um nome um tanto interessante voltou pro açoitamento umas cinco ou seis vezes... E quase foi expulso...
- puxa – Douglas estremeceu enquanto se levantava. Pelas palavras do mestre, ser açoitado deveria doer mais do que aparenta. – o que ele fazia para merecer tal castigo? Quero dizer... Assim, tantas vezes?
- gostaria muito de matar sua curiosidade jovem... Mas a memória me falha... Às vezes ela não quer lembrar de propósito, outras... Bom, o leite com aguardente das enfermeiras ajuda também – e gargalhou alto, quase babando.
Douglas agradeceu e despediu-se do mestre. Quase todas as casuais conversas que os alunos tinham com Mestre Wu eram estranhas assim. Mas essa foi mais estranha que o habitual.
Correu mais um pouco, dessa vez mais atento e encontrou Lucas sentado num degrau da gigantesca escada que levava até o complexo da Academia Estrela de Fogo, comendo uma maçã, avermelhada de dar água na boca, com quem não quer nada com a vida.
- e aí? – disse ele, olhando de relance para Douglas, que parou hesitante perto do rapaz, mudando completamente sua expressão, como tinha feito na sala perante seu professor há poucos minutos atrás. Observou dali a torre em espiral, onde os Mestres e Monitores da academia moravam. Olhou para a casa do mestre, bem ao fundo, escondida nas colinas vermelhas. Continuou olhando ao redor. Admirou os grandes centros de ensino, Sowlu, do Ensino Primário, Wanlu, do Ensino Avançado, Ji-Myan, o centro de magias e de armas, e por fim, Fenji, o centro dos Graduados. Havia também a biblioteca, que era a segunda maior dentre as academias. A maior estava em Liao Yun, a Academia dos Médicos.
Enfim sentou-se.
- fui bem. Gabaritei sabe...
Lucas deu mais uma mordida, acompanhada de um grunhido. Permaneceu em silencio comendo a maçã.
- o professor falou que sou o melhor da sala. E que desperdiço meus talentos com você.
Finalmente Lucas falou.
- ele disse isso com essas palavras?
- divirta-me Uchiha. O professor não falaria isso. Mas não sou estúpido. Estava apenas disfarçando o que realmente queria dizer por debaixo de um comentário idiota.
- espero que tenha aprendido a lição.
- que lição? Caçar galinhas não é algo produtivo, isso eu já sabia. Mas só cumpria ordens do caçador.
- o caçador não te dá ordens Douglas. O mestre dá. Os monitores dão. Os professores dão. O caçador tem tanto poder de dar ordens quanto aquele jardineiro aparando as hortênsias ao redor da biblioteca.
- se o jardineiro estivesse sobre a vigia dos mestres, ele poderia.
- mas não está, Douglas. Não está. Assim como Wang. Ele não estava sobre vigia de ninguém pra te mandar caçar galinhas.
- olha quem fala: Uchiha, o mestre da detenção.
Uchiha Lucas riu, acompanhado por Douglas. Levantaram e começaram a descer a escada, brilhando sobre a luz do sol nascente. A Academia Estrela de Fogo fica numa gigante colina vermelha e, por estar cercada de montanhas, a alvorada se atrasa e apenas a partir das nove da manhã é que se vê o Sol pela primeira vez.
- quer catar cogumelos depois do almoço? – perguntou Lucas. O garoto parecia estar entediado. Era sábado e os planaltos estavam desertos. Catar cogumelos é uma perfeita distração, sem falar que em Izumo, cogumelos verdes é um prato muito apreciado. Em outras palavras, era uma brincadeira até lucrativa, se conseguissem matar os cogumelos sem causar muito estrago. Mas ultimamente, o mercado de Izumo tem crescido em nível acelerado, muito mais rápido que o normal. Teriam de dar sorte para conseguirem vender algo no meio de tantas barracas, de feiras e de mercadores ambulantes. Uchiha sabia disso, era um pouco mais esperto para essas coisas. Sabia onde deviam ir e quando, para fazer seja lá o que for.
- não posso – disse Douglas – acho que já encontrei o que fazer hoje...
- jura? Desde que os planaltos começaram a esvaziar você nunca teve o que fazer.
- pois hoje tenho.
- então boa sorte, no que quer que seja. Vou para Dong Xuen. Estou com fome e a essa hora o bar Ou Yang ainda está vazio.
- por que não come na nossa cantina?
- arg – Uchiha enrugou a cara com uma expressão de nojo – não agüento mais aquela gororoba que eles fazem. Prefiro o macarrão com carne do Ou Yang. Nossa, meu estomago revira só de sentir o cheirinho...
No fim da escada tinha um Mensageiro, como são chamados os duendes que enviam os guerreiros com magia para outras cidades nas quais também existem duendes Mensageiros. Estava postado quase ereto, se suas condições anatômicas não o deixassem curvado, um tanto corcunda. É uma criatura baixinha e pálida, geralmente coberta por gibões de pluma verde.
Lucas despediu-se de Douglas e se dirigiu para o duende.
- quero ir para Dong Xuen, por favor.
- 100 moedas de prata. – disse numa monótona voz cansada.
- e o preço vai subindo... – suspirou o rapaz.
Disse essas palavras já no meio da Praça de Dong, que era onde iam parar os viajantes, que surfavam por entre os mensageiros.
* * *
Um
— Pelo amor de Bess! Isso dói!
— Desiste?
— Não! Vamos de novo!
O garoto pegou a espada de bambu caída no chão e avançou contra o outro rapaz, que parecia ser seu mestre. Calmo e inspirado, o mais velho apenas se esquivou do ataque e, com outra espada de bambu, revidou rapidamente contra a investida do aprendiz. Atacou seu pulso em tal velocidade, que pouco se podia ver o movimento da estaca verde da arma.
A espada do jovem foi novamente atirada ao chão. O barulho produzido já estava cansando os ouvidos do rapaz, que tinha as mãos quase pretas de sangue seco e seu rosto com cascas de sangue coagulado. Suas vestimentas brancas estavam por toda parte manchadas de vermelho.
— Você só está se cansando Flyper. Não me ouve. Eu já disse mil vezes, não importa o quão forte você possa atacar. Onde está sua postura? Olhe só pra você. Quase curvado. E essas pernas? Quais possibilidades de movimento você tem para revidar?
Flyper bufou de cansaço. Suas pernas tremiam. O sol quente secava o rastro de sangue que escorria de seu ombro até pingar pelo indicador. O calor ardia tanto quanto as feridas. A visão estava turva.
— Vamos de novo! – gritou.
— Você não aprende ou não quer aprender Flyper?
— Dessa vez eu sei que consigo!
O mestre permaneceu calado. Flyper investiu outra vez, mas agora, o outro só desviava dos golpes tortos da espada de bambu.
— Revide! Revide mestre! – rosnou o aprendiz.
Sozinho, o garoto acabou tropeçando em alguns bambus secos empilhados no chão. Caiu de frente, largando novamente a espada. O mestre aproximou-se e a sombra de sua cabeça aliviou a visão do jovem, deitado e gemendo no chão. Flyper arrastou o braço até que seus dedos encontrassem a espada caída próxima a ele.
Sem forças para erguê-la, continuou gemendo:
— Outra vez... Vamos... Vamos de novo...
— Você não presta atenção nem na paisagem ao seu redor. Quando se cansar do chão, vá comer algo. Tem bolo de arroz na mesa da sala – havia um olhar triste, de desapontamento e decepção, pregados em seu rosto cansado.
O mestre olhava de relance para as rajadas de sol que se cruzavam por entre as frestas na floresta de bambus. Estava sentado numa cadeira de madeira, básica e com poucos detalhes notáveis. Também não trajava nada em especial, além de sua bermuda larga e suavemente amarelada e uma camiseta de malha. Alguns raios de sol iluminavam metade de seu rosto. A outra metade estava protegida sobre a sombra do toldo da varanda. Por entre as portas corrediças escancaradas da sala o garoto, agora limpo e bem vestido, lentamente aproximou-se de onde seu mestre estava sentado, e jogou-se na parede, deixando as costas deslizarem até o chão.
— Mestre Shanks...
Shanks não respondeu. Flyper liberou um forte suspiro cansado. Ficaram calados, encarando a floresta de bambus, onde atrás o sol se escondia.
— Não vou mais te dar aulas. – disse o mestre sem mudar a direção de seu olhar – Não estou apto. Cheguei a essa conclusão. Não posso ser seu mestre. Não posso ser mestre de ninguém.
— Eu não entendo mestre. Eu não...
— Quatro meses e nada. Quatro meses Flyper, e você não aprendeu nada. Agora já estou achando que o problema sou eu.
— Mestre não é não...
— Eu não estou perguntando, Flyper. Isso já é uma certeza. Se eu não sou capaz de ensinar, não serei mais professor.
Flyper se levantou. Calado, foi atravessando a varanda daquela casa humilde e pisou descalço novamente na graminha escassa daquela terra dura.
— Aonde você vai? – perguntou Shanks, finalmente olhando para o rapaz.
— Dar uma volta. Esse bolinho não quer descer mesmo...
— Se eu avistar a lua antes da sua chegada...
— Já sei mestre, já sei... Vai me amarrar de cabeça pra baixo com pasta de arroz e deixar que as plantas carnívoras me arranquem os olhos.
Um vestígio de sorriso pairou sobre os lábios do Mestre Shanks. Mas ele permaneceu calado e sem expressão. Bom rapaz.
Flyper avançou floresta adentro e, quando já estava longe, parou de disfarçar sua postura. Agora já podia mancar. Andar fingindo que pouco sentia a dor insuportável das feridas abertas de manhã era mais incomodo que as próprias feridas. Sozinho, pensando sabe-se lá o que, o garoto seguiu a trilha da floresta de bambus, que por causa dessa mesma trilha, recebeu o nome de caminho dos bambus. É uma trilha grande, que não leva a lugar nenhum. Quando perguntava a seu mestre aonde ela termina, ele nunca dava uma resposta concreta. Termina aonde deve terminar. Às vezes Flyper desistia de ter alguma conversa séria com o Mestre.
Depois de andar tanto, precisou parar para descansar. Retirou um pequeno cantil de água e tomou alguns goles. A água esquentou com todo esse calor e Flyper precisou de mais alguns goles pra saciar sua sede. Só então quando parou parar notar a paisagem ao redor, viu que estava começando a anoitecer. Havia ficado horas sentado sozinho, ali no meio da trilha. Levantou-se da terra dura, e correu para as últimas frestas de luz. Então deu por si no topo de um penhasco. E que vista incrível. Podia ver a província das Rochas Mágicas, a Floresta Yu-Feng... E a suave brisa de outono... Os ventos caminhavam por ali, ventos que não se sentia em nenhuma outra parte do Caminho dos Bambus. E ao fundo, o Sol lentamente ia descendo, escondendo-se nas montanhas dos desertos a oeste. Ainda escondido entre as encostas do Instituto Lioo-yun, era possível ver alguns templos de Tian Shu, onde eram treinados os Caçadores do Sol.
Flyper sentou-se na beirada do penhasco, deixando as pernas pendendo. Dali podia ver a continuação da trilha, que se bifurcava e entrava na Floresta e na Província. E ouviu a voz de seu mestre sussurrando entre seus ouvidos. A floresta é a passagem para o norte. Guarde essas palavras rapaz, você não quer conhecer os nortenhos.
O garoto é um mal nascido do sul. Teve os pais mortos por Ladrões de Túmulos e foi levado para os monges de um mosteiro perto de Lioo-Yun. Alguma coisa aconteceu nessa época. Algum terrível acidente. Então fugiu, e correu para o leste, sempre o leste. Correu por dias, talvez por semanas, até que finalmente encontrou um suposto peregrino. Era um contador de histórias, a primeira pessoa com quem teve uma conversa amigável desde que seus pais foram mortos.
— Do que você foge garoto? — perguntou o velho — Foge da noite? Foge dos selvagens? Ou foge do seu destino?
Flyper riu.
— Não acredito nessa coisa de destino. Sinto como se eu não controlasse minha própria vida.
O velho sorriu. Carregava algumas mantas vaidosamente enfeitadas e um cajado de madeira roxa. Sussurrou alguma coisa e entre os pequenos galhos no chão surgiu uma labareda. A fogueira estava pronta, como num truque de mágica.
— Sabe garoto... Você não controla sua vida. Mas não é por causa do destino, — parou para tossir. — esse olhar triste... Ele expressa, sabe... Os seus sofrimentos, os seus medos... Sabe por que você não controla sua vida?
Flyper não respondeu.
— Porque você não sabe como fazê-lo.
— Não entendo. — o rapaz evitava falar muito. Nesses casos, ele preferia escutar.
— Há quanto tempo você corre? Pelos calos ensangüentados nos seus pés, presumo que há pelo menos cinco dias. Sabe o que tem mais para o leste?
O velho não esperou resposta dessa vez e prosseguiu.
— Água. Muita água. Pretende nadar isso tudo?
Não tinha pensado nisso, quis dizer. Mas tudo o que saiu foi “não senhor...”
— Então por que você corre? Estava fugindo?
— Sim, mas não era do meu destino, era...
O homem fez um gesto de silencio.
— Eu não preciso saber. Vou te contar uma história. Sabe... eu gosto muito de andar. Eu nasci num templo, nas colinas vermelhas. Isso faz muitas décadas, talvez mais de um século...
— Puxa, quantos anos o senhor tem? — Flyper interrompeu.
— Eu... Eu não sei... Mas isso não vem ao caso. — deu um risinho — Enfim, isso foi no ano em que Bess, Aquele que tem a mais forte Pedra Sábia, morreu. Foi muito triste sabe... As pessoas ficaram com medo de novo, como se os antigos monstros estivessem dormindo embaixo de suas camas. A esperança que o ancião trouxe, morreu com ele. Mas no mesmo ano, nomearam seu sucessor. Bei Si, o diretor. Ele fez uma visita, pouco tempo depois, as colinas vermelhas. Passou no meu templo e todos os monges fizeram uma reverência como se fosse Deus ali na frente. Mas era só um homem. Um homem poderoso, forte, mas um homem. Assim como os outros seis anciões.
— Seis?
— Sim, seis. Cada um fundou a sua academia sobre as ordens de Bess. Posso continuar? – deu um risinho.
— Sim, desculpe...
— Então... — parou para tossir. A essa altura já estava com um pouco de dificuldade de falar, e fazia pausas para respirar e fungar bruscamente. — O diretor entrou devagar na nossa praça, e meus mestres se curvaram. Meus mestres se curvaram em reverência, mas eu não sabia o que fazer. E ele... Ele olhou pra mim e sorriu... E veio andando atentamente, em passos lentos, na minha direção. Eu pensei que ele fosse fazer algo, me punir ou quem sabe me ensinar alguma reverência. Talvez eu o estivesse desrespeitando. Mas ele simplesmente me olhou nos olhos e disse “O que faz aqui?”. Eu não tinha entendido bem o que era aquilo. Ora, eu queria ser da Dinastia do Sol, queria ser um Lutador e honrar os Seis Anciões de Dong Xuen... Mas ele continuou. “Eu vejo um futuro de guerras e glórias. E você não está nele. Sabe o que quer dizer isso?”
Flyper ouvia atentamente. Estava com os olhos tão fixos no homem, que lacrimejavam por causa da fogueira logo ao lado. Piscou bruscamente e esfregou os olhos com a blusa de trapos, e voltou a olhar para o velho.
— O quê? — perguntou ao homem.
— O quê, o quê?
— O quê significa?
— O quê significa o quê?
Flyper olhou para o chão desiludido. “Ele realmente não sabe o que está falando. O pobre homem perdeu a razão.”
— Garoto, parece faminto. Vamos, me ajude a comer essa ovelha.
O rapaz ficou com água na boca. Fazia dias que não comia.
— É do planalto, nas colinas vermelhas – continuou. – muito saborosa por sinal. São animais interessantes... Elas matam tigres e arrancam sua pele, e a vestem, como se fosse só mais uma vestimenta que usamos.
— Ovelhas matando tigres?
O velho riu um pouco, e logo sua risada se misturou com uma nova crise de tosse. Tomou fôlego e disse:
— No norte as coisas são assim. Ovelhas matam tigres, aprendizes ensinam mestres, selvagens falam como humanos e demônios caminham sobre as montanhas. — suspirou — Bons tempos...
— Bons tempos de quê? — perguntou Flyper, curioso, enquanto observava o velho cortar um pedaço da coxa da ovelha e perfurá-la com um espeto sobre a fogueira.
— De quê o quê?
— Deixa pra lá... — disse o garoto, novamente desiludido.
Na manhã seguinte, Flyper acordou sozinho. Não havia velho nenhum, nem vestígios de uma fogueira, e o pior, nem a suculenta ovelha ficou.
Continuou andando, sobre o sol ardente e encontrou a trilha dos Bambus. Caminhou por algumas horas, até que sentiu o delicioso cheiro de almoço. Aparentava ser algum coelho assado. Antes de ser acolhido por monges de Lioo-yun, Flyper mendigou em cidades próximas e aprendeu a reconhecer os pratos que lhe agradariam. Nessa época, aos 13 anos, já se mostrava um exímio ladrão. Roubava, principalmente, comida das padarias do Oásis na hora do almoço, e de vez enquanto, garrafas de vinhos de tabernas locais.
Aproximou-se e tentou espiar o local de onde vinha o confortável cheiro de assado. Espreitou-se por entre os bambus. Viu um rapaz ruivo, humildemente vestido, aparentemente limpo e sozinho. Logo atrás, erguia-se uma casa feita de madeira nobre, talvez de Yu-Feng. Fácil demais.
Quando deu o primeiro passo para roubar seu almoço, um tentáculo verde e seco enrolou-se sobre suas pernas, fazendo-o tropeçar. No chão, virou de costas e deu-se com uma criatura nojenta e demoníaca, encarando-o com uma expressão indecifrável. Seu hálito tinha cheiro de carne, de morte. Então o bicho gritou. Um grito fino, e preparou-se para atacar. Por entre os bambus, mais dessa coisa começaram a rastejar em direção ao garoto preso no chão, e agora, com o monstro sobre seu peito, aproximando-se de seu rosto. A criatura rosnou novamente.
Uma gosma verde pingou sobre o rosto de Flyper em seu momento de mais angustia. Um tentáculo verde e afiado penetrou a cabeça da criatura e rapidamente saiu, desferindo golpes em seu corpo verde e mole. Flyper libertou-se do peso do cadáver e tentou correr. As criaturas brigavam por ele, e uma delas conseguiu alcançá-lo. Desesperado, o garoto quebrou uma vara meio podre de bambu, a primeira coisa que conseguiu achar para se defender. O monstro carnívoro avançou sobre ele, desferindo golpes de seu tentáculo verde, que se erguia como uma cauda, lembrando muito um escorpião. O tentáculo prendeu no bambu, e puxou-o com força. Quando Flyper soltou, a vara voou ferozmente na direção daquela coisa raivosa, e penetrou seu peito. Gosma verde começou a vazar e dar filetes espirrados para fora do corpo. Quando se virou para correr novamente, já havia outros dois desse monstro cercando-o.
Quando o primeiro partiu para atacá-lo, uma rajada prateada cortou o ar e o rosto da coisa simplesmente caiu. O outro monstro ficou parado, mas algo chamou a atenção do restante desse bando. Incontáveis desses bichos rastejaram na direção de Flyper. Sem reação, o rapaz fechou os olhos. E de repente, ouviu o barulho de mil espadas voando do céu e fincando na terra dura. Abriu os olhos, e não havia espada alguma. Apenas corpos ensopados de gosma verde, e um homem ruivo, que andava em sua direção. Com os joelhos tremendo, o garoto continuou sem reação e viu o homem passar direto por ele, em direção a uma estaca fincada no chão, perto de onde tinha cortado o rosto daquela criatura. Uma espada Cidiana. Embainhando a espada, em lugar nenhum, o homem pôs a mão no ombro esfarrapado de Flyper.
— Está com fome garoto?
O rapaz engoliu seco.
— Estou... Mas eu não queria roubar nada, eu só...
— Não tem problema. — interrompeu. — Vamos, tenho roupas pra você.
O homem levou o jovem Flyper para dentro da casa de madeira. Não era grande coisa, mesmo com seu lindo acabamento externo.
— Tenho água morna na banheira, caso queira tomar um banho.
Flyper assentiu com a cabeça.
— A propósito, meu nome é Shanks. E você é o?
— Obrigado. Quero dizer, Flyper, eu acho. Faz tempo que não ouço meu nome.
— Flyper... É um nome... Interessante... Seu sotaque... Você veio dos desertos?
— Eu... Sim... Obrigado mesmo, eu pensei que fosse...
Shanks riu. Uma risada leve, suave.
— Caminho dos Bambus não é um lugar para se andar sozinho. Pra onde você está indo?
O garoto pensou um pouco antes de responder, e em seu intimo chegou a uma conclusão:
— Não sei. Eu não faço idéia de pra onde estou indo, pra onde tenho que ir. Não sei o que fazer agora.
O homem o encarou por um minuto. E então notou suas roupas, rasgadas e praticamente toda trapos esfarrapados. Mas reparou em algo na roupa do garoto.
— Essa insígnia... Você esteve em Lioo-yun?
Agora Flyper sentia-se culpado.
— Eu fugi! Mas por favor, não me leve de volta! Por favor!
— Não levarei garoto. Por que fugiu?
— Eu não... Quero dizer, eu... — o cheiro de almoço o desconcentrava.
— Tudo bem, não interessa. — disse em tom gentil. — Melhor se apressar. O almoço está quase pronto.
Flyper tomou o banho e vestiu as roupas novas. Olhou-se no pequeno espelho da parede. “Flyper”, sussurrou pra si mesmo.
Abriu os olhos, já não havia mais sol, tinha de voltar. Mas pensar em correr já lhe deixava com as feridas sentidas. Quando se preparou pra levantar, sentiu uma presença atrás de si.
— Mestre... Eu já estava voltando...
— Eu sei...
Shanks sentou-se, quase na mesma posição de Flyper, com as pernas pendendo. Olhou para a Lua, erguendo-se nas montanhas ao longe. Seu brilho já iluminava boa parte da floresta que se estendia logo abaixo. Shanks suspirou longa e profundamente.
— Partirei amanhã para Noras – era como chamavam a Cidade Da Saudade. - Recebi um corvo do Ancião. Espero que você se comporte lá.
Flyper não respondeu e Shanks vislumbrou a lua mais um pouco. Suspirou novamente.
— Vamos. Vamos voltar, já está na hora dos Demônios de Barro acordarem.
Estava deitado na cama, engolido pelo breu do quarto. Sozinho com seus pensamentos se, virou e ficou de bruços. Fechou os olhos. Um ruído no quarto fez com que os abrisse novamente. Era a janela, que entreabriu com uma suave brisa fresca. Agora a aconchegante luz da Lua iluminava um pequeno trecho do quarto. Lá embaixo, Shanks deveria estar cozinhando algo, mas não sentiu cheiro algum. Levantou-se e foi para a janela. Debruçou-se entre as venezianas e olhou a trilha azulada. Era uma noite linda, de céu estrelado, e sem nuvem alguma para atrapalhar o deslumbre dos observadores.
Novamente viu-se naquele dia em que Shanks o salvou. Na madrugada, o garoto não conseguiu dormir. Os ganidos dos Demônios de Barro eram enlouquecedores. Não tardou muito até que se acostumasse. Desceu as escadas de seu quarto e parou no corredor, quando uma rajada de ar frio da noite entrou pela porta entreaberta e cruzou sua roupa e seu corpo até continuar seu caminho para o fim do corredor. Era um corredor não muito longo. Haviam archotes apagados nas paredes, e por isso estava escuro. A curiosidade o fez seguir o vento. Deu passos curtos e ao máximo silenciosos, aproximando-se da porta dupla, de bronze, enfeitada com os escorpiões da Estrela De Fogo. Quando tocou a porta, viu os archotes se acendendo atrás de si, e quando olhou para trás, deparou-se com Shanks, segurando sua espada de escorpião, feita de metal Pompeano. Mas logo, o homem descansou sua postura e embainhou a espada nas costas.
Aquela porta sempre atiçou a curiosidade de Flyper. E o mestre fazia questão de nunca tocar no assunto.
Eram três da manhã quando a primeira nuvem surgiu no céu, convidada por alguma montanha, e escondeu a lua cheia da noite. Foi então que o jovem aprendiz finalmente decidiu dormir. Amanhã, será um longo dia.
Meu nome é Gabriel Ferreira. Participo de vários foruns na internet (quase todos são de jogos) e atualmente estou trabalhando numa fanfic do jogo magic campus. É um jogo de browser (navegador) que está crescendo muito rapidamente. No forum do jogo, a fanfic está no capitulo 5.
Decidi postar aqui pra ver se agrada ao pessoal. Não fiz nada muito preso ao jogo, e os nomes foram retirados dos nicks de amigos que fiz no forum e in game. Creio que dá para entender a história mesmo que nunca ouviu falar no jogo.
bom, vou postar o prologo e mais 2 capitulos de uma vez, já que são pequenos.
Espero que gostem.
Abraços.
Prólogo.
- acho que devemos voltar. Se anoitecer antes de chegarmos à trilha será difícil alcançar Dong Xuen ainda hoje.
- está com medo Selenium?
- não tenho medo de selvagens. Já fomos a lugares piores e isso pouco se compara aos Assassinos do Mar Vago.
- Kyshme, concordo com o Selenium, estamos andando a duas horas. Pelo que eu sei, não existe nenhum Mensageiro nesta região. Não vamos conseguir atravessar a pé e daqui a pouco vai anoitecer. Sabe como esse lugar congela durante a noite.
- vamos andar mais um pouco. Se não encontrarmos os corpos, nós retornaremos. Satisfeitos? Se não tivessem parado na pradaria, ainda estaríamos com nossos cavalos.
- se não tivéssemos parado em Ta-Ke, estaríamos mortos de fome – respondeu Nick, com um pequeno toque de agonia no seu tom de voz – e também, quem esperaria que os lobos estivessem guardando a estrada?
- eles guardam as estradas Nick. Essa é a tarefa deles.
Uma breve pausa. Kyshme escutou algo nas redondezas do vasto mato alto, que cobria os rapazes até os joelhos. Era um som que lembrava galhos quebrando, sendo esmagados com cuidado, um pouco longe de onde o grupo estava.
- alguém ouviu? – perguntou aflito.
- ouviu o que?
E então o mesmo barulho, dessa vez mais perto.
- isso. Tem alguma coisa aqui – Kyshme sussurrou – deve ser um Caracol.
- guardas? Tão longe do lago? Acho pouco provável – respondeu Nick, enquanto abaixava-se para amarrar um de suas botas, cobertas de lama.
Agora o mato mexia-se de forma incomum na direção norte de onde estavam abaixados. Kyshme, e Selenium, que iam à frente, logo desembainharam suas adagas. Usar espadas dentro de um bosque assim é pouco eficiente, já que esse tipo de local é fechado demais para manusear armas grandes.
E então um sussurro:
- Kyshme? É você?
Os garotos ficaram imóveis. E outra vez:
- Kyshme? Selenium?
Era uma voz rouca, que dava a impressão de que foi toda gasta em pouco tempo. Selenium levantou vagarosamente para observar o que estaria do outro lado da grama alta.
- Holy? – perguntou em direção ao mato. – HolyHands?
Um vulto negro surgiu bruscamente, como quem se levanta de seu assento por reflexo de uma alfinetada.
- Holy! Assustou-nos rapaz! Por um estante pensei que os Selvagens aprenderam a falar nossa língua – disse Kyshme, surpreso e com notável ironia.
- pra onde vocês estão indo? – perguntou Holy, fazendo força para falar. Sua voz estava extremamente gasta e cansada.
- para Dong Xuen. – respondeu Selenium, interrompendo o dialogo - Viemos de Pompéia – prosseguiu mais aliviado - mas o Mensageiro do Oasis mandou-nos erradamente para o deserto do Mar Vago. Estávamos a pé desde então. Nossos cavalos comprados na Pradaria foram roubados antes de cruzarmos a fronteira com a Ilha do Sol. E o que você faz aqui?
- Selvagens. Estava caçando alguns arruaceiros. Eles andaram causando problemas na Vila.
- estávamos procurando alguns desses também! Parece que eles estão revoltados. Vimos alguns na Ta-Ke, estavam indo para o Sul – Nick se intrometeu, cumprimentando o velho amigo.
- para o Sul? O que os selvagens fazem indo para o deserto?
- não sei Holy. Não sei nem como chegaram nessas redondezas. Não é todo dia que vemos selvagens em lugares tão pacatos como o Lago do Sol. E afinal, cadê a sua equipe?
Holy fez uma pequena pausa para pensar novamente. Estava escolhendo com cuidado suas próximas palavras.
- estão mortos Kysh. Acho que todos eles.
- como assim meu amigo?
- Acampamos na fronteira da Vila. Algo nos surpreendeu ao amanhecer e matou nossos cavalos. Pensamos que fossem selvagens, mas já não ponho mais fé nisso. Eu estava a pé com outros quatro soldados Pangeanos. Quando parei para atender os chamados da natureza, simplesmente não os encontrei em minhas proximidades. Avancei mais um pouco para o norte, e foi então que...
Holy parou de falar. Olhou para baixo e sentou-se numa tora de arvore derrubada recentemente, provavelmente por ação das chuvas fortes. Deu um longo suspiro, e agora, com a escuridão aumentando, o frio alcançava os pulmões dos rapazes e era possível ver o hálito branco saindo de suas bocas.
- o que aconteceu Holy? – Selenium estava curioso e um pouco receoso.
O garoto hesitou um pouco antes de continuar, novamente escolhendo suas palavras com cuidado. E por fim, disse:
- eu os encontrei.
- quem? Os seus soldados?
- não Kyshme. Eu encontrei os selvagens. Estavam todos mortos. Todos eles. Depois de passar um tempo tentando entender o que havia se passado, decidi entrar na pequena aldeia deles. Havia muito sangue, restos de seus corpos pra todos os lados. Foi uma carnificina. Tinha uma barraca grande, que me chamou a atenção. Entrei por pura curiosidade e encontrei Lacos, um de meus soldados. Estava preso, acorrentado. Morto. Algo arrancou-lhe o coração.
- Santo Bei Si! Que coisa bizarra! – disse Nick, com a voz tremula. O rapaz estava um pouco mais apreensivo, com a suspeita de que não estavam atrás de selvagens, mas de uma ameaça maior.
Depois de um pequeno e incomodo silencio, Kyshme reergueu a cabeça. Entregou sua adaga a Holy, que estava com a armadura danificada em certas partes, e também desarmado.
- melhor esclarecermos isso depois. È bom retornarmos antes que fique mais escuro.
- você está liderando o grupo Kyshme?
- sim Holy, esses fanfarrões não estão aptos para ficar no meu posto – respondeu rindo.
- sei.. – respondeu com desinteresse – mas agora já é tarde. Não vão alcançar as trilhas para a hospedaria em Ta-Ke. Acho mais fácil retornamos a Vila.
- Vila do Sol? Estamos a quanto tempo de lá?
- uma meia hora. Vocês podem descansar na residência dos Li-Yang. Afinal, o Mestre Li-Yang que estava responsável pelos Pangeanos. Acho que não se importará.
Foi um percurso silencioso. Os rapazes pouco conversaram até chegar à Vila. Era um lugar pequeno, um vilarejo minúsculo, resumido em apenas duas ruas. Na primeira, haviam algumas poucas moradas com mais de dois andares e pequenas lojas de mantimentos. A segunda rua resumia-se em um restaurante e um notável casarão feito de pedra, com seu exterior vaidosamente decorado de pedras ornamentais, vindas, com certeza, de muito longe dali.
- é a mansão dos Li-Yang – disse Holy, guiando os outros por entre a pequena multidão que se acumulara nas entradas da Vila, na esperança de receber boas noticias. Quando as pessoas notaram que apenas um enviado de Li-Yang voltara dos bosques, tiveram seus rostos tomados pela habitual expressão pálida e triste. A Vila estava atormentada por seres malditos do bosque, que todos acreditavam que fossem os selvagens. E pelo visto, não era naquele dia que o tormento acabaria.
Era fácil detectar um Pangeano. As vestimentas, em geral, destacam o vermelho vinho com detalhes dourados nas partes inferiores, a altura dos joelhos. Um colar dourado envolvendo o pescoço, braceletes de tecido branco com detalhes de azul metálico e prateado, cobrindo os braços do cotovelo até o punho, e por fim, uma tiara envolvendo a cabeça, branca com ressaltos roxos e bordas amarelas, são as principais características de um autentico graduado da Academia Pangea. Embora Pangeano não seja a palavra adequada, era assim que estes eram chamados fora da academia. Holy Hands era o único Pangeano entre os quatro ali presentes.
Ao chegarem aos portões do casarão, foram recebidos por guardas bem fardados. Calmos e cansados, foram encaminhados diretamente para o aposento do Mestre Li-Yang.
Silenciosamente, entraram na sala e permaneceram calados, até que o mestre finalmente quebrou o silencio.
- ora, estes não são meus enviados – disse em tom gentil – então quem são?
- não se preocupe senhor. São da Dinastia do Sol.
- da dinastia do sol – murmurou baixinho, como se fosse apenas para ele ouvir – então são da família. Mas onde estão meus soldados?
- eu receio que estejam mortos, senhor. Todos eles. E os selvagens também. Eles não são mais uma preocupação – disse Holy, com a voz tremula. – e estes aqui eu encontrei no caminho. Vieram de Pompéia e estão cansados. Ofereci que passassem a noite em nossas estalagens.
- certo, certo. Afinal, uma noticia boa compensa uma ruim. Nos apresentaremos durante o banquete. Sey-Li levará vocês até seus quartos. E recomendo que tomem um banho. Estão todos empesteados.
Mais ou menos uma hora depois, aos poucos, um a um entrava na grande sala do jantar, escolhendo um assento na grande mesa, feita em quase toda sua parte, de mogno. Em meia hora, todos já estavam presentes, tagarelando. Quando o Mestre Li-Yang se apresentou, o silencio tomou a sala e ninguém falou nada até ele fazer a primeira pronuncia.
- Meus caros amigos e mestres – fez uma pausa e em seguida soltou um suspiro dramático. Enfim prosseguiu – hoje temos um grande motivo para comemorar. Os selvagens estão mortos.
Mal terminou a sua pronuncia e logo todos voltaram a tagarelar empolgados com a noticia.
Holy, Nick, Kyshme e Selenium sentaram-se próximos perante a mesa. O mestre fez mais algumas pronuncias, e pouco depois, os criados entraram com toda a comida na sala e a puseram sobre a mesa. Os convidados e hospedes comiam empolgados, e os sons de colheres raspando e batendo em seus pratos formava uma melodia acompanhada do barulho que as bocas cheias faziam ao mastigar.
Pouco depois, a sala foi ficando vazia. Alguns convidados se retiraram, antes que ficasse muito tarde para pegar a estrada. As estradas de terra para Dong Xuen são terríveis durante a noite.
- isso é uma tradição dos Li-Yang – sussurrou Holy Hands no ouvido de Selenium – eles fazem um banquete especial com os regentes da Dinastia do Sol a cada lua minguante. Daqui a pouco vamos ter uma boa história.
Não demorou muito, e o Mestre Li-Yang, sentado em sua poltrona alta, deu vários toques com a colher em seu cálice de vidro, pedindo a atenção de todos.
A mais recente Li-Yang aproximou-se dos pés da poltrona e puxou as vestes de seu pai.
- papai, pode continuar a história da Princesa Sofia? Por favor..
- a história da princesa Sofia – disse lentamente – pois bem, onde paramos?
- ela estava atravessando o vale de pedra papai... A bruxa malvada corria atrás dela..
Kyshme franziu o cenho, como um gesto de interesse.
- acho que já ouvi essa história – sussurrou para Holy – a princesa corre para o topo de um vulcão onde um deus a ajuda a matar a bruxa... Se me lembro bem, ela tem um filho nesse vulcão e...
- ele funda Pompéia – interrompeu Holy. – é realmente uma história famosa.
Depois do jantar, os garotos foram guiados pela Senhora Li-Yang até seus quartos. Selenium recebeu o ultimo quarto, ao fim do corredor. A moça o levou até a porta, e entrou junto com ele para despedir-se com boas noites.
- a comida estava ótima – disse Selenium, gentilmente – faz muito tempo que não comia assim.
- agradeço sua educação – retrucou a mulher, com um sorriso gentil no rosto. – a maioria de nossos cozinheiros cursou com o Mestre Ou Yang, de Dong Xuen.
- isso explica muita coisa, minha senhora. Bom, enfim o dia terminou... Mal vejo à hora de voltar para casa.
- vejo que foram tempos difíceis para vocês – disse com certo ar de interesse – Huang Xiao Ya nos informou de que os recém formados não estão recebendo a mínima trégua...
- é verdade senhora. Mas não estávamos a serviço do Capitão de Proteção. Caçávamos selvagens a pedido dos regentes de Pompéia. Mas de certa forma, os ataques da legião de lenço preto têm se tornado mais freqüente...
- hmm – murmurou.. Bom, boa noite guerreiro. Se pretendem partir cedo amanhã, recomendo que descanse bem.
- boa noite madame – disse gentilmente. A moça fechou a porta e foi-se embora. Selenium despiu-se e deitou – mal vejo a hora... – repetiu em um sussurro para si mesmo.
Ao amanhecer, partiram para Dong Xuen. Uma espaçosa carroça dada como presente aos soldados, puxada por quatro corcéis brancos foi de grande importância nessas estradas acidentadas.
Pouco antes da partida, Kyshme tentou convencer Holy Hands a ir junto para Dong Xuen.
- tem certeza de que vai ficar? – disse.
- absoluta, meu amigo. Meus serviços contratados por Li-Yang ainda não terminaram. Preciso cumprir com a meta dele.
- entendo. Nos veremos na formatura?
- puxa, estamos no mês de formatura... Havia me esquecido. Soube que este ano teremos poucos formados... Os mestres apertaram os cursos. Você foi convidado pra assistir a cerimônia?
- com toda a honra – respondeu Kyshme, ao dar um risinho forçado – Selenium também foi. Talvez nos peçam para adotar aprendizes.
- não o imagino como professor, caro amigo. Muito menos o Selenium – retrucou.
- é normal. Mas não vou querer ser professor. Ao menos que renda o suficiente, ou que o novato seja talentoso. Lutadores ainda são fáceis de ensinar. Pior os Médicos, é o que dizem.
- Hei! Kyshme! Você quer ir a pé até Dong? Vamos, não agüento mais ficar aqui – gritou Nick, da carroça.
- bom, vou lá. Até mais, meu amigo - Os rapazes abraçaram-se em despedida e Kyshme entrou ansioso na carroça. Não demorou muito até avistarem os grandes portões da cidade, ao longe, do outro lado do campo do Lago Do Sol.
A carroça chegou triunfante perante os portões de Dong Xuen. São portões grandes, dourados, com um Leão Serpente esculpido no topo lateral de cada porta. O portão fica apoiado sobre duas grandes hastes verdes, enfeitadas com detalhes dourados.
A Carroça parou em frente ao palacete dos mestres e regentes da cidade. A cidade é grande, embora não possua muitas residências. Os prédios são quase todos comerciais. Trata-se de farmácias, mercearias, feiras de mascotes, ferrarias, lojas de jóias e um único banco. Fora isso, havia algumas tabernas, barracas militares, a grande biblioteca, uma arena, as docas e o palácio dos Regentes.
Na entrada do palacete, uma figura um tanto interessante postava-se ereta, como quem guarda os portões. Estava escondido sobre uma complexa armadura. Vestia uma capa vermelha, com uma enorme ilustração de fênix. Na frente, estampado no peitoral da armadura prateada, estava escrito “puma”, sobre efeitos de labaredas detalhadamente pintadas sobre o ferro. O resto da armadura era negro como as botas de pano e metal, e a calça por traz das vestes abaixo da cintura. As vestes eram uma combinação de branco com preto. Ele usava duas ombreiras com ressaltes dourados, embora quase imperceptíveis e braceletes de ferro. A parte superior dos braços estava nua, exibindo músculos bem trabalhados. Na cintura, uma série de cintos metálicos e cordas pretas amarravam uma espada embainhada que se estendia quase até o chão e uma adaga, não muito longa, porém não muito curta, exibindo sua lamina afiadíssima e seu punhal bem enfeitado. Puma não largava o punhal da espada. Quando os rapazes saíram da carroça, encarou um a um perante os portões e pouco falou.
- estão atrasados – disse.
- nós sabemos – retrucou Kyshme. - Precisamos falar com o capitão de proteção.
- Feng não estará à disposição de vocês hoje – disse rigidamente.
- ainda não falamos com ele para saber – retrucou novamente, enquanto encarava Puma.
O cavalheiro abriu a porta, evitando cuspir mais palavras nos soldados. Eles entraram e dirigiram-se para o enorme salão, não muito distante da entrada. Aguardaram um pouco e foram acolhidos pelo Diretor do Mercado. Fizeram uma reverencia pala cumprimentá-lo.
- vocês estão dois dias atrasados – disse o diretor em um tom rígido. Um silêncio se espalhou pela sala, como se todos estivessem selecionando as palavras mais adequadas.
- puma não está tendo um bom dia, é o que parece – Nick foi o primeiro a romper o silencio, mudando de assunto.
- ah, sim. Feng, o retirou de uma missão importante. – o Diretor mudou completamente sua expressão. Já não estava mais sério como havia se apresentado - Iriam interceptar alguns generais de lenço preto que cruzavam pelo Planalto do Sol – disse. O diretor era um tanto gordo, estava sempre vestido de azul, com longas vestimentas de pluma. Possuía uma barba branca, não muito comprida, mas tampava-lhe quase todo o rosto.
- o que ele fez para ser removido da missão? Já é um costume ouvir elogios de sua atuação como comandante no campo.
- ele está acima desse patamar Selenium. Pensei que soubesse, recentemente foi promovido para General. Mas isso não vem ao caso. Vocês entregaram a carta para vosso rei de Pompéia?
- sim senhor – Selenium estava desanimado. Talvez estivesse só um pouco cansado, mas era notável um toque de tristeza em sua voz.
Não conversaram muito e logo o Capitão Feng apareceu na Sala.
- ora, aí estão vocês – disse – Kyshme, quero conversar com você – prosseguiu enquanto o agarrava pelo braço, puxando-o para fora da sala. Deixaram o palacete e foram para uma taberna vazia, abandonando Selenium e Nick a deriva do Diretor. Provavelmente eles conversaram sobre negócios. O capitão encarregou-se de fechar as portas e janelas para que não fossem ouvidos, enquanto Kyshme o encarava tenso.
Feng dirigiu-se para o balcão da taberna, onde tinha atrás, uma série de prateleiras e pequenos armários. Pegou duas taças de vidro e as colocou sobre o bar, enchendo-as com o vinho.
- aceita? – perguntou amigavelmente – veio de Yun-Lu – prosseguiu – não faz idéia de como é raro. As safras de lá crescem uma vez a cada dez anos. Guardo para ocasiões especiais.
- o que torna isso uma ocasião especial?
- ora Kyshme... Ora, ora.. Afinal, não existem segredos entre nós, não é mesmo?
Kyshme permaneceu calado enquanto o capitão levava as taças para uma mesa perto do bar. Puxou sua cadeira e antes de se sentar, puxou outra, como um convite silencioso. Kyshme não hesitou. Sentou-se e tomou um pequeno gole. Depois de um breve silencio, Feng voltou a falar.
- não vai me dar as noticias?
- que noticias? Do que você está falando senhor?
- pare com esse joginho – O capitão Feng estava tentando se controlar, mas parecia esconder uma ânsia profunda, como se algo estivesse por acontecer – sabe, ontem de madrugada, alguns boatos chegaram à cidade... Andam dizendo que você e seus amiginhos mataram todos os selvagens dentro dos domínios da Dinastia. Mas hoje cedo eu fui caçar alguns desertores e sabe o que eu encontrei não muito longe dos nossos portões?
Kyshme hesitou permanecer calado.
- um caracol. Um soldado caracol Kyshme. E você sabe o que é um soldado Caracol, não sabe?
- um selvagem – murmurou.
- não foram vocês que mataram os selvagens. Você nem deve saber quais foram mortos, se é que foram mortos mesmo.
- não estou entendendo aonde você quer chegar, senhor.
- onde quero chegar? Ultimamente, as tropas de Lenço Preto têm atacado em ritmo mais acelerado que o normal. Foi um belo dia no qual eu e o Puma lideramos uma tropa de reforço para a Estrela de Fogo. Boa parte dos ataques se concentrou lá.
- não é a toa senhor. Desde que eu me formei vejo uma enorme demanda por novos Lutadores.
- não importa. O Puma viu alguma coisa no caminho. O flanco que ele comandava estava separado do meu. Ele levou uma tropa inteira pro meio do mato e aí todos morreram – disse com um tom irônico e prosseguiu dando uma risada forçada, para ressaltar a ironia – todos morreram, cara. E o desgraçado voltou sem nem saber o que os havia atacado. Pobre Ru... Ele era um dos meus melhores comandantes... E voltou sem coração. Isso mesmo, um buraco enorme no peito. E isso bate com um certo boato que ouviram na Vila. Lacos era um Pangeano famoso. Ah, se era. Ele também teve o coração arrancado nas proximidades da Vila do Sol.
Quando o Capitão parou de falar, tomado por um silencio espontâneo, ainda estava encarando Kyshme, que engoliu seco.
- você sabe qual criatura gosta de arrancar o coração de suas vitimas mais renomadas? – prosseguiu. Kyshme sabia a resposta, mas não queria assumir.
- senhor, eu...
- NÃO ME CHAME DE SENHOR – gritou interrompendo – nossa relação é muito mais intima para que você me trate assim. Me chame de Feng logo, antes que eu lhe de um murro. Responda a minha pergunta!
- eu não..
- Kyshme, responde a droga da pergunta – continuou gritando, socando a mesa. Sua taça quicou sobre a madeira e caiu deitada, rolando até a borda e espatifando-se no chão.
- demônios. Demônios fazem isso - Kyshme respondeu.
Feng soltou um suspiro triunfante e fez uma pausa percebendo que havia chegado onde queria.
- você viu algum?
- não. Não vi. Pelo amor de Bei Si, por que diabos estamos falando disso?
- Li-Yang contratou Pangeanos para matar uma ameaça que pensava vir dos selvagens. Eu sei disso. Se demônios passaram mesmo por lá, nossa Dinastia corre um grande perigo. E eu sou o Capitão de Proteção droga! – Feng estava gritando praticamente para si mesmo. Não olhava para Kyshme enquanto cuspia suas palavras – Eu sou o Capitão de Proteção – repetiu mais calmo olhando para o chão – isso é tudo. Eu queria arrancar isso de você.
- o que vai fazer Feng? Tenho certeza que o Puma já sabe disso. Foi por isso que tirou ele da ultima missão, não foi?
Feng hesitou em responder.
- foi. Não importa agora. Você já pode ir. E não se preocupe. Não irei caçar demônios sem te chamar antes. Você e seus amiginhos fanfarrões.
* * *
- Douglas, entrega logo essa maldita prova! O sinal já bateu! – disse o professor.
- calma! Não terminei!
- terminou sim! Anda, me de isso – o professor já estava puxando a prova da carteira do menino.
- falta o meu nome! – levantou em protesto.
- deixa que eu ponho! Agora sente-se novamente e cale-se!
A sala estava vazia. Era sábado e não tem aula aos sábados. Estavam presentes ali apenas o professor e o menino.
- não entendi ainda o motivo disso. Eu não merecia essa detenção! - protestava o rapaz.
- isso foi por você ter matado as galinhas do Wang Wu.
- quantas vezes vou ter que dizer que ele me pediu?
- não vou discutir isso com você de novo. Se for reclamar, reclame com o Monitor.
O professor passou o olho na prova, voltou para sua mesa. Pousou a prova e puxou uma pena para analisá-la. Logo fechou a cara, fazendo uma expressão séria franzindo o cenho, como se não se conformasse com algo.
- não entendo como você desperdiça seu talento em bobagens – disse sem desviar o olhar.
- como disse?
- você gabaritou Douglas. Acertou tudo.
O garoto parecia que ia saltar da carteira para comemorar, mas preferiu manter a postura de quem não se importava.
- é mesmo? – disse – è porque Teoria de Magias Ativas não é muito meu forte, sabe... – continuou em tom sarcástico – posso ir agora?
- sim, retire-se, por favor.
Em passos lentos, Douglas se retirou da sala fazendo questão de exibir um ar de superior perante o professor. Ao chegar à porta, o professor interrompeu seu desfile.
- Douglas!
O menino virou-se.
- sim?
- na próxima vez que caçar galinhas no pantanal, vou deixar o treinador te açoitar.
- não se preocupe senhor.
O professor franziu novamente o cenho.
- ele não vai conseguir me pegar – continuou o garoto, sussurrando sozinho e baixinho ao virar-se para frente.
Continuou seguindo pelo corredor, em passos ansiosos. Era um corredor entre a parede de vidro com longas persianas que filtravam a luz do sol das dez da manhã e as salas de aula. O chão era todo coberto por azulejos artesanais vindos de Xian Duo, a capital do comercio, depois claro, de Dong Xuen. As paredes eram compostas por uma linda espécie de madeira, sendo as internas extraídas de Yu-Feng e as externas do Caminho do Bambo. Era realmente um lugar de visual impecável para uma escola primária. A Academia Estrela de Fogo, um complexo de vários prédios, é a mais importante academia entre as outras. Todos os anos, a demanda por Lutadores Artistas, assim chamados por originarem de trupes itinerantes, cresce em ritmo superior a de outras profissões. Às vezes, essa demanda é ultrapassada pela academia dos Atiradores Mágicos, também conhecidos como Elites.
Pelo fato de possuir mais alunos, a academia recebe mais investimentos oriundos do tesouro do Palácio de Dong Xuen.
Douglas todas às vezes passava admirado por aquele corredor. Desta vez, porem, passou quase correndo. Sentia a brisa da liberdade, da recente luz da alvorada. Estava preso em detenção no colégio e mal podia esperar para sentir o ar puro da manhã do lado de fora da Academia. Sua ânsia começou a aumentar a cada passo em direção a porta, mas o corredor parecia não terminar. Antes, Douglas teria notado a enorme quantidade de salas, o grande labirinto que o complexo interno formava, com seu grande número de corredores transversais, a grande quantidade de salas de madeira... E aquela madeira, a linda madeira exportada da mítica floresta Yu-Feng... O rapaz adorava ouvir histórias sobre as florestas... Mas hoje não. Hoje é sábado, e garotos descansam aos sábados. Então, finalmente se viu cruzando a porta da entrada, a grande porta de madeira dourada, única e exclusiva das preciosas Terras do Guardião. Seus passos corridos, no entanto, tropeçaram com os do Mestre Wu. O idoso guerreiro aposentado, o fogo da era dos despreocupados, a própria estrela de fogo. Mas era apenas um idoso, no final das contas. O mestre já não tinha mais tanto poder. O grande Wu, estava pequeno e quase corcunda, mas andava com suas famosas vestes vermelho vivo, que ao longe dava a impressão de que este estava em chamas. Com sua bengala, feita da mesma madeira que envolvia as paredes do corredor, apoiava-se com dificuldade para manter-se de pé.
Douglas quase jogou o mestre no chão. O velho, sempre sorridente, exibindo seus poucos dentes, conseguiu se esquivar do garoto, demonstrando reflexos ainda apurados. Ao primeiro ver, mestre Wu era fraco e lento, mas não era necessário conhecê-lo de longa data para entender que ainda existe um fogo ardendo dentro de seu espírito perseverante, e que ainda existe força para, uma ultima vez, empunhar sua famosa espada Wu Zi.
- mil perdões mestre, eu não queria...
- não se desculpe jovem – disse sorrindo o mestre banguela – afinal, sábado não é dia de ficar na escola...
- eu não... Eu estava em...
- detenção – o mestre interrompeu novamente. Era um senhor ansioso por se expressar, e era raro terminar uma frase perto dele – na minha época era muito pior... Esse troço de detenção não existia jovem.. Era açoitamento – deu um risinho – o famoso e temido açoitamento. Perdi a conta de quantas costas já sangraram naquele tronco ali. E como se resolvesse o problema... Uma vez, há alguns anos atrás, um jovem com um nome um tanto interessante voltou pro açoitamento umas cinco ou seis vezes... E quase foi expulso...
- puxa – Douglas estremeceu enquanto se levantava. Pelas palavras do mestre, ser açoitado deveria doer mais do que aparenta. – o que ele fazia para merecer tal castigo? Quero dizer... Assim, tantas vezes?
- gostaria muito de matar sua curiosidade jovem... Mas a memória me falha... Às vezes ela não quer lembrar de propósito, outras... Bom, o leite com aguardente das enfermeiras ajuda também – e gargalhou alto, quase babando.
Douglas agradeceu e despediu-se do mestre. Quase todas as casuais conversas que os alunos tinham com Mestre Wu eram estranhas assim. Mas essa foi mais estranha que o habitual.
Correu mais um pouco, dessa vez mais atento e encontrou Lucas sentado num degrau da gigantesca escada que levava até o complexo da Academia Estrela de Fogo, comendo uma maçã, avermelhada de dar água na boca, com quem não quer nada com a vida.
- e aí? – disse ele, olhando de relance para Douglas, que parou hesitante perto do rapaz, mudando completamente sua expressão, como tinha feito na sala perante seu professor há poucos minutos atrás. Observou dali a torre em espiral, onde os Mestres e Monitores da academia moravam. Olhou para a casa do mestre, bem ao fundo, escondida nas colinas vermelhas. Continuou olhando ao redor. Admirou os grandes centros de ensino, Sowlu, do Ensino Primário, Wanlu, do Ensino Avançado, Ji-Myan, o centro de magias e de armas, e por fim, Fenji, o centro dos Graduados. Havia também a biblioteca, que era a segunda maior dentre as academias. A maior estava em Liao Yun, a Academia dos Médicos.
Enfim sentou-se.
- fui bem. Gabaritei sabe...
Lucas deu mais uma mordida, acompanhada de um grunhido. Permaneceu em silencio comendo a maçã.
- o professor falou que sou o melhor da sala. E que desperdiço meus talentos com você.
Finalmente Lucas falou.
- ele disse isso com essas palavras?
- divirta-me Uchiha. O professor não falaria isso. Mas não sou estúpido. Estava apenas disfarçando o que realmente queria dizer por debaixo de um comentário idiota.
- espero que tenha aprendido a lição.
- que lição? Caçar galinhas não é algo produtivo, isso eu já sabia. Mas só cumpria ordens do caçador.
- o caçador não te dá ordens Douglas. O mestre dá. Os monitores dão. Os professores dão. O caçador tem tanto poder de dar ordens quanto aquele jardineiro aparando as hortênsias ao redor da biblioteca.
- se o jardineiro estivesse sobre a vigia dos mestres, ele poderia.
- mas não está, Douglas. Não está. Assim como Wang. Ele não estava sobre vigia de ninguém pra te mandar caçar galinhas.
- olha quem fala: Uchiha, o mestre da detenção.
Uchiha Lucas riu, acompanhado por Douglas. Levantaram e começaram a descer a escada, brilhando sobre a luz do sol nascente. A Academia Estrela de Fogo fica numa gigante colina vermelha e, por estar cercada de montanhas, a alvorada se atrasa e apenas a partir das nove da manhã é que se vê o Sol pela primeira vez.
- quer catar cogumelos depois do almoço? – perguntou Lucas. O garoto parecia estar entediado. Era sábado e os planaltos estavam desertos. Catar cogumelos é uma perfeita distração, sem falar que em Izumo, cogumelos verdes é um prato muito apreciado. Em outras palavras, era uma brincadeira até lucrativa, se conseguissem matar os cogumelos sem causar muito estrago. Mas ultimamente, o mercado de Izumo tem crescido em nível acelerado, muito mais rápido que o normal. Teriam de dar sorte para conseguirem vender algo no meio de tantas barracas, de feiras e de mercadores ambulantes. Uchiha sabia disso, era um pouco mais esperto para essas coisas. Sabia onde deviam ir e quando, para fazer seja lá o que for.
- não posso – disse Douglas – acho que já encontrei o que fazer hoje...
- jura? Desde que os planaltos começaram a esvaziar você nunca teve o que fazer.
- pois hoje tenho.
- então boa sorte, no que quer que seja. Vou para Dong Xuen. Estou com fome e a essa hora o bar Ou Yang ainda está vazio.
- por que não come na nossa cantina?
- arg – Uchiha enrugou a cara com uma expressão de nojo – não agüento mais aquela gororoba que eles fazem. Prefiro o macarrão com carne do Ou Yang. Nossa, meu estomago revira só de sentir o cheirinho...
No fim da escada tinha um Mensageiro, como são chamados os duendes que enviam os guerreiros com magia para outras cidades nas quais também existem duendes Mensageiros. Estava postado quase ereto, se suas condições anatômicas não o deixassem curvado, um tanto corcunda. É uma criatura baixinha e pálida, geralmente coberta por gibões de pluma verde.
Lucas despediu-se de Douglas e se dirigiu para o duende.
- quero ir para Dong Xuen, por favor.
- 100 moedas de prata. – disse numa monótona voz cansada.
- e o preço vai subindo... – suspirou o rapaz.
Disse essas palavras já no meio da Praça de Dong, que era onde iam parar os viajantes, que surfavam por entre os mensageiros.
* * *
Um
— Pelo amor de Bess! Isso dói!
— Desiste?
— Não! Vamos de novo!
O garoto pegou a espada de bambu caída no chão e avançou contra o outro rapaz, que parecia ser seu mestre. Calmo e inspirado, o mais velho apenas se esquivou do ataque e, com outra espada de bambu, revidou rapidamente contra a investida do aprendiz. Atacou seu pulso em tal velocidade, que pouco se podia ver o movimento da estaca verde da arma.
A espada do jovem foi novamente atirada ao chão. O barulho produzido já estava cansando os ouvidos do rapaz, que tinha as mãos quase pretas de sangue seco e seu rosto com cascas de sangue coagulado. Suas vestimentas brancas estavam por toda parte manchadas de vermelho.
— Você só está se cansando Flyper. Não me ouve. Eu já disse mil vezes, não importa o quão forte você possa atacar. Onde está sua postura? Olhe só pra você. Quase curvado. E essas pernas? Quais possibilidades de movimento você tem para revidar?
Flyper bufou de cansaço. Suas pernas tremiam. O sol quente secava o rastro de sangue que escorria de seu ombro até pingar pelo indicador. O calor ardia tanto quanto as feridas. A visão estava turva.
— Vamos de novo! – gritou.
— Você não aprende ou não quer aprender Flyper?
— Dessa vez eu sei que consigo!
O mestre permaneceu calado. Flyper investiu outra vez, mas agora, o outro só desviava dos golpes tortos da espada de bambu.
— Revide! Revide mestre! – rosnou o aprendiz.
Sozinho, o garoto acabou tropeçando em alguns bambus secos empilhados no chão. Caiu de frente, largando novamente a espada. O mestre aproximou-se e a sombra de sua cabeça aliviou a visão do jovem, deitado e gemendo no chão. Flyper arrastou o braço até que seus dedos encontrassem a espada caída próxima a ele.
Sem forças para erguê-la, continuou gemendo:
— Outra vez... Vamos... Vamos de novo...
— Você não presta atenção nem na paisagem ao seu redor. Quando se cansar do chão, vá comer algo. Tem bolo de arroz na mesa da sala – havia um olhar triste, de desapontamento e decepção, pregados em seu rosto cansado.
O mestre olhava de relance para as rajadas de sol que se cruzavam por entre as frestas na floresta de bambus. Estava sentado numa cadeira de madeira, básica e com poucos detalhes notáveis. Também não trajava nada em especial, além de sua bermuda larga e suavemente amarelada e uma camiseta de malha. Alguns raios de sol iluminavam metade de seu rosto. A outra metade estava protegida sobre a sombra do toldo da varanda. Por entre as portas corrediças escancaradas da sala o garoto, agora limpo e bem vestido, lentamente aproximou-se de onde seu mestre estava sentado, e jogou-se na parede, deixando as costas deslizarem até o chão.
— Mestre Shanks...
Shanks não respondeu. Flyper liberou um forte suspiro cansado. Ficaram calados, encarando a floresta de bambus, onde atrás o sol se escondia.
— Não vou mais te dar aulas. – disse o mestre sem mudar a direção de seu olhar – Não estou apto. Cheguei a essa conclusão. Não posso ser seu mestre. Não posso ser mestre de ninguém.
— Eu não entendo mestre. Eu não...
— Quatro meses e nada. Quatro meses Flyper, e você não aprendeu nada. Agora já estou achando que o problema sou eu.
— Mestre não é não...
— Eu não estou perguntando, Flyper. Isso já é uma certeza. Se eu não sou capaz de ensinar, não serei mais professor.
Flyper se levantou. Calado, foi atravessando a varanda daquela casa humilde e pisou descalço novamente na graminha escassa daquela terra dura.
— Aonde você vai? – perguntou Shanks, finalmente olhando para o rapaz.
— Dar uma volta. Esse bolinho não quer descer mesmo...
— Se eu avistar a lua antes da sua chegada...
— Já sei mestre, já sei... Vai me amarrar de cabeça pra baixo com pasta de arroz e deixar que as plantas carnívoras me arranquem os olhos.
Um vestígio de sorriso pairou sobre os lábios do Mestre Shanks. Mas ele permaneceu calado e sem expressão. Bom rapaz.
Flyper avançou floresta adentro e, quando já estava longe, parou de disfarçar sua postura. Agora já podia mancar. Andar fingindo que pouco sentia a dor insuportável das feridas abertas de manhã era mais incomodo que as próprias feridas. Sozinho, pensando sabe-se lá o que, o garoto seguiu a trilha da floresta de bambus, que por causa dessa mesma trilha, recebeu o nome de caminho dos bambus. É uma trilha grande, que não leva a lugar nenhum. Quando perguntava a seu mestre aonde ela termina, ele nunca dava uma resposta concreta. Termina aonde deve terminar. Às vezes Flyper desistia de ter alguma conversa séria com o Mestre.
Depois de andar tanto, precisou parar para descansar. Retirou um pequeno cantil de água e tomou alguns goles. A água esquentou com todo esse calor e Flyper precisou de mais alguns goles pra saciar sua sede. Só então quando parou parar notar a paisagem ao redor, viu que estava começando a anoitecer. Havia ficado horas sentado sozinho, ali no meio da trilha. Levantou-se da terra dura, e correu para as últimas frestas de luz. Então deu por si no topo de um penhasco. E que vista incrível. Podia ver a província das Rochas Mágicas, a Floresta Yu-Feng... E a suave brisa de outono... Os ventos caminhavam por ali, ventos que não se sentia em nenhuma outra parte do Caminho dos Bambus. E ao fundo, o Sol lentamente ia descendo, escondendo-se nas montanhas dos desertos a oeste. Ainda escondido entre as encostas do Instituto Lioo-yun, era possível ver alguns templos de Tian Shu, onde eram treinados os Caçadores do Sol.
Flyper sentou-se na beirada do penhasco, deixando as pernas pendendo. Dali podia ver a continuação da trilha, que se bifurcava e entrava na Floresta e na Província. E ouviu a voz de seu mestre sussurrando entre seus ouvidos. A floresta é a passagem para o norte. Guarde essas palavras rapaz, você não quer conhecer os nortenhos.
O garoto é um mal nascido do sul. Teve os pais mortos por Ladrões de Túmulos e foi levado para os monges de um mosteiro perto de Lioo-Yun. Alguma coisa aconteceu nessa época. Algum terrível acidente. Então fugiu, e correu para o leste, sempre o leste. Correu por dias, talvez por semanas, até que finalmente encontrou um suposto peregrino. Era um contador de histórias, a primeira pessoa com quem teve uma conversa amigável desde que seus pais foram mortos.
— Do que você foge garoto? — perguntou o velho — Foge da noite? Foge dos selvagens? Ou foge do seu destino?
Flyper riu.
— Não acredito nessa coisa de destino. Sinto como se eu não controlasse minha própria vida.
O velho sorriu. Carregava algumas mantas vaidosamente enfeitadas e um cajado de madeira roxa. Sussurrou alguma coisa e entre os pequenos galhos no chão surgiu uma labareda. A fogueira estava pronta, como num truque de mágica.
— Sabe garoto... Você não controla sua vida. Mas não é por causa do destino, — parou para tossir. — esse olhar triste... Ele expressa, sabe... Os seus sofrimentos, os seus medos... Sabe por que você não controla sua vida?
Flyper não respondeu.
— Porque você não sabe como fazê-lo.
— Não entendo. — o rapaz evitava falar muito. Nesses casos, ele preferia escutar.
— Há quanto tempo você corre? Pelos calos ensangüentados nos seus pés, presumo que há pelo menos cinco dias. Sabe o que tem mais para o leste?
O velho não esperou resposta dessa vez e prosseguiu.
— Água. Muita água. Pretende nadar isso tudo?
Não tinha pensado nisso, quis dizer. Mas tudo o que saiu foi “não senhor...”
— Então por que você corre? Estava fugindo?
— Sim, mas não era do meu destino, era...
O homem fez um gesto de silencio.
— Eu não preciso saber. Vou te contar uma história. Sabe... eu gosto muito de andar. Eu nasci num templo, nas colinas vermelhas. Isso faz muitas décadas, talvez mais de um século...
— Puxa, quantos anos o senhor tem? — Flyper interrompeu.
— Eu... Eu não sei... Mas isso não vem ao caso. — deu um risinho — Enfim, isso foi no ano em que Bess, Aquele que tem a mais forte Pedra Sábia, morreu. Foi muito triste sabe... As pessoas ficaram com medo de novo, como se os antigos monstros estivessem dormindo embaixo de suas camas. A esperança que o ancião trouxe, morreu com ele. Mas no mesmo ano, nomearam seu sucessor. Bei Si, o diretor. Ele fez uma visita, pouco tempo depois, as colinas vermelhas. Passou no meu templo e todos os monges fizeram uma reverência como se fosse Deus ali na frente. Mas era só um homem. Um homem poderoso, forte, mas um homem. Assim como os outros seis anciões.
— Seis?
— Sim, seis. Cada um fundou a sua academia sobre as ordens de Bess. Posso continuar? – deu um risinho.
— Sim, desculpe...
— Então... — parou para tossir. A essa altura já estava com um pouco de dificuldade de falar, e fazia pausas para respirar e fungar bruscamente. — O diretor entrou devagar na nossa praça, e meus mestres se curvaram. Meus mestres se curvaram em reverência, mas eu não sabia o que fazer. E ele... Ele olhou pra mim e sorriu... E veio andando atentamente, em passos lentos, na minha direção. Eu pensei que ele fosse fazer algo, me punir ou quem sabe me ensinar alguma reverência. Talvez eu o estivesse desrespeitando. Mas ele simplesmente me olhou nos olhos e disse “O que faz aqui?”. Eu não tinha entendido bem o que era aquilo. Ora, eu queria ser da Dinastia do Sol, queria ser um Lutador e honrar os Seis Anciões de Dong Xuen... Mas ele continuou. “Eu vejo um futuro de guerras e glórias. E você não está nele. Sabe o que quer dizer isso?”
Flyper ouvia atentamente. Estava com os olhos tão fixos no homem, que lacrimejavam por causa da fogueira logo ao lado. Piscou bruscamente e esfregou os olhos com a blusa de trapos, e voltou a olhar para o velho.
— O quê? — perguntou ao homem.
— O quê, o quê?
— O quê significa?
— O quê significa o quê?
Flyper olhou para o chão desiludido. “Ele realmente não sabe o que está falando. O pobre homem perdeu a razão.”
— Garoto, parece faminto. Vamos, me ajude a comer essa ovelha.
O rapaz ficou com água na boca. Fazia dias que não comia.
— É do planalto, nas colinas vermelhas – continuou. – muito saborosa por sinal. São animais interessantes... Elas matam tigres e arrancam sua pele, e a vestem, como se fosse só mais uma vestimenta que usamos.
— Ovelhas matando tigres?
O velho riu um pouco, e logo sua risada se misturou com uma nova crise de tosse. Tomou fôlego e disse:
— No norte as coisas são assim. Ovelhas matam tigres, aprendizes ensinam mestres, selvagens falam como humanos e demônios caminham sobre as montanhas. — suspirou — Bons tempos...
— Bons tempos de quê? — perguntou Flyper, curioso, enquanto observava o velho cortar um pedaço da coxa da ovelha e perfurá-la com um espeto sobre a fogueira.
— De quê o quê?
— Deixa pra lá... — disse o garoto, novamente desiludido.
Na manhã seguinte, Flyper acordou sozinho. Não havia velho nenhum, nem vestígios de uma fogueira, e o pior, nem a suculenta ovelha ficou.
Continuou andando, sobre o sol ardente e encontrou a trilha dos Bambus. Caminhou por algumas horas, até que sentiu o delicioso cheiro de almoço. Aparentava ser algum coelho assado. Antes de ser acolhido por monges de Lioo-yun, Flyper mendigou em cidades próximas e aprendeu a reconhecer os pratos que lhe agradariam. Nessa época, aos 13 anos, já se mostrava um exímio ladrão. Roubava, principalmente, comida das padarias do Oásis na hora do almoço, e de vez enquanto, garrafas de vinhos de tabernas locais.
Aproximou-se e tentou espiar o local de onde vinha o confortável cheiro de assado. Espreitou-se por entre os bambus. Viu um rapaz ruivo, humildemente vestido, aparentemente limpo e sozinho. Logo atrás, erguia-se uma casa feita de madeira nobre, talvez de Yu-Feng. Fácil demais.
Quando deu o primeiro passo para roubar seu almoço, um tentáculo verde e seco enrolou-se sobre suas pernas, fazendo-o tropeçar. No chão, virou de costas e deu-se com uma criatura nojenta e demoníaca, encarando-o com uma expressão indecifrável. Seu hálito tinha cheiro de carne, de morte. Então o bicho gritou. Um grito fino, e preparou-se para atacar. Por entre os bambus, mais dessa coisa começaram a rastejar em direção ao garoto preso no chão, e agora, com o monstro sobre seu peito, aproximando-se de seu rosto. A criatura rosnou novamente.
Uma gosma verde pingou sobre o rosto de Flyper em seu momento de mais angustia. Um tentáculo verde e afiado penetrou a cabeça da criatura e rapidamente saiu, desferindo golpes em seu corpo verde e mole. Flyper libertou-se do peso do cadáver e tentou correr. As criaturas brigavam por ele, e uma delas conseguiu alcançá-lo. Desesperado, o garoto quebrou uma vara meio podre de bambu, a primeira coisa que conseguiu achar para se defender. O monstro carnívoro avançou sobre ele, desferindo golpes de seu tentáculo verde, que se erguia como uma cauda, lembrando muito um escorpião. O tentáculo prendeu no bambu, e puxou-o com força. Quando Flyper soltou, a vara voou ferozmente na direção daquela coisa raivosa, e penetrou seu peito. Gosma verde começou a vazar e dar filetes espirrados para fora do corpo. Quando se virou para correr novamente, já havia outros dois desse monstro cercando-o.
Quando o primeiro partiu para atacá-lo, uma rajada prateada cortou o ar e o rosto da coisa simplesmente caiu. O outro monstro ficou parado, mas algo chamou a atenção do restante desse bando. Incontáveis desses bichos rastejaram na direção de Flyper. Sem reação, o rapaz fechou os olhos. E de repente, ouviu o barulho de mil espadas voando do céu e fincando na terra dura. Abriu os olhos, e não havia espada alguma. Apenas corpos ensopados de gosma verde, e um homem ruivo, que andava em sua direção. Com os joelhos tremendo, o garoto continuou sem reação e viu o homem passar direto por ele, em direção a uma estaca fincada no chão, perto de onde tinha cortado o rosto daquela criatura. Uma espada Cidiana. Embainhando a espada, em lugar nenhum, o homem pôs a mão no ombro esfarrapado de Flyper.
— Está com fome garoto?
O rapaz engoliu seco.
— Estou... Mas eu não queria roubar nada, eu só...
— Não tem problema. — interrompeu. — Vamos, tenho roupas pra você.
O homem levou o jovem Flyper para dentro da casa de madeira. Não era grande coisa, mesmo com seu lindo acabamento externo.
— Tenho água morna na banheira, caso queira tomar um banho.
Flyper assentiu com a cabeça.
— A propósito, meu nome é Shanks. E você é o?
— Obrigado. Quero dizer, Flyper, eu acho. Faz tempo que não ouço meu nome.
— Flyper... É um nome... Interessante... Seu sotaque... Você veio dos desertos?
— Eu... Sim... Obrigado mesmo, eu pensei que fosse...
Shanks riu. Uma risada leve, suave.
— Caminho dos Bambus não é um lugar para se andar sozinho. Pra onde você está indo?
O garoto pensou um pouco antes de responder, e em seu intimo chegou a uma conclusão:
— Não sei. Eu não faço idéia de pra onde estou indo, pra onde tenho que ir. Não sei o que fazer agora.
O homem o encarou por um minuto. E então notou suas roupas, rasgadas e praticamente toda trapos esfarrapados. Mas reparou em algo na roupa do garoto.
— Essa insígnia... Você esteve em Lioo-yun?
Agora Flyper sentia-se culpado.
— Eu fugi! Mas por favor, não me leve de volta! Por favor!
— Não levarei garoto. Por que fugiu?
— Eu não... Quero dizer, eu... — o cheiro de almoço o desconcentrava.
— Tudo bem, não interessa. — disse em tom gentil. — Melhor se apressar. O almoço está quase pronto.
Flyper tomou o banho e vestiu as roupas novas. Olhou-se no pequeno espelho da parede. “Flyper”, sussurrou pra si mesmo.
Abriu os olhos, já não havia mais sol, tinha de voltar. Mas pensar em correr já lhe deixava com as feridas sentidas. Quando se preparou pra levantar, sentiu uma presença atrás de si.
— Mestre... Eu já estava voltando...
— Eu sei...
Shanks sentou-se, quase na mesma posição de Flyper, com as pernas pendendo. Olhou para a Lua, erguendo-se nas montanhas ao longe. Seu brilho já iluminava boa parte da floresta que se estendia logo abaixo. Shanks suspirou longa e profundamente.
— Partirei amanhã para Noras – era como chamavam a Cidade Da Saudade. - Recebi um corvo do Ancião. Espero que você se comporte lá.
Flyper não respondeu e Shanks vislumbrou a lua mais um pouco. Suspirou novamente.
— Vamos. Vamos voltar, já está na hora dos Demônios de Barro acordarem.
Estava deitado na cama, engolido pelo breu do quarto. Sozinho com seus pensamentos se, virou e ficou de bruços. Fechou os olhos. Um ruído no quarto fez com que os abrisse novamente. Era a janela, que entreabriu com uma suave brisa fresca. Agora a aconchegante luz da Lua iluminava um pequeno trecho do quarto. Lá embaixo, Shanks deveria estar cozinhando algo, mas não sentiu cheiro algum. Levantou-se e foi para a janela. Debruçou-se entre as venezianas e olhou a trilha azulada. Era uma noite linda, de céu estrelado, e sem nuvem alguma para atrapalhar o deslumbre dos observadores.
Novamente viu-se naquele dia em que Shanks o salvou. Na madrugada, o garoto não conseguiu dormir. Os ganidos dos Demônios de Barro eram enlouquecedores. Não tardou muito até que se acostumasse. Desceu as escadas de seu quarto e parou no corredor, quando uma rajada de ar frio da noite entrou pela porta entreaberta e cruzou sua roupa e seu corpo até continuar seu caminho para o fim do corredor. Era um corredor não muito longo. Haviam archotes apagados nas paredes, e por isso estava escuro. A curiosidade o fez seguir o vento. Deu passos curtos e ao máximo silenciosos, aproximando-se da porta dupla, de bronze, enfeitada com os escorpiões da Estrela De Fogo. Quando tocou a porta, viu os archotes se acendendo atrás de si, e quando olhou para trás, deparou-se com Shanks, segurando sua espada de escorpião, feita de metal Pompeano. Mas logo, o homem descansou sua postura e embainhou a espada nas costas.
Aquela porta sempre atiçou a curiosidade de Flyper. E o mestre fazia questão de nunca tocar no assunto.
Eram três da manhã quando a primeira nuvem surgiu no céu, convidada por alguma montanha, e escondeu a lua cheia da noite. Foi então que o jovem aprendiz finalmente decidiu dormir. Amanhã, será um longo dia.
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Re: A Dinastia Do Sol
Se sua fic está no lugar errado (Andamento, Paradas, Concluidas, ou Short Fic), peço desculpas, e, por favor, peço que me mande uma MP pedindo para mudar de lugar. Obrigada^^
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